Blog do Pedro Hauck: maio 2012

28 de maio de 2012

A mãe vaca - Marvin Harris


capa de Atom Heart Mother - Pink Floyd, 1970


Extraído de Vacas, Porcos, guerras e Bruxas: Os enigmas da Cultura. De Marvin Harris, Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro – 1978.

Sempre que entro em discussões sobre a influência de fatores práticos e naturais nos estilos de vida, aparece alguém e diz: “O que há com todas aquelas vacas que os famintos camponeses da Índia se recusam a comer?”A imagem de um agricultor maltrapilho, morrendo de fome ao lado de uma imensa vaca gorda, transmite aos observadores ocidentais uma tranqüilizante sensação de mistério. Inúmeras alusões,eruditas e populares, confirmam nossa mais profunda convicção de como deveriam agir os povos de mentalidade oriental. É agradável saber  – algo assim como “sempre haverá uma Inglaterra”- que na Índia os valores espirituais são mais preciosos que a própria vida. E ao mesmo tempo, isto nos entristece. Como poderemos esperar compreender um povo tão diferente de nós? Os ocidentais julgam a idéia de que possa haver alguma explicação prática para o amor indiano às vacas muito mais perturbadora do que os próprios indianos. A vaca sagrada  –  e de que outra forma poderia dize-lo? –  é uma das nossas vacas sagradas favoritas.

Os hindus veneram as vacas porque são o símbolo de tudo o que é vivo. Assim como Maria é, para os cristãos, a Mãe de Deus, para os indianos a vaca é a mãe da vida. Não existe, portanto, maior sacrilégio para um indiano que matar uma vaca. Até mesmo o sacrifício de uma vida humana deixa de ter o significado simbólico, ou a inexprimível profanação representada pelo abate de uma vaca. Segundo vários técnicos, a veneração às vacas é a causa principal da fome e da pobreza na Índia. Alguns agrônomos educados no Ocidente afirmam que o tabu contra o seu abate tem conservado vivos cem milhões de “inúteis” animais. Alegam que essa veneração reduz a eficiência na agricultura, já que as vacas não contribuem nem com o leite nem com a carne, embora entrem em competição por cereais e alimentos, com os animais úteis e com famintos seres humanos. 

Um estudo patrocinado pela Fundação Ford, em 1959, concluiu que se poderia considerar a metade do rebanho indiano como excedente em relação ao suprimento alimentar. E um economista da Universidade da Pennsylvania afirmou, em 1971, que a Índia possui trinta milhões de vacas improdutivas.Parece que há uma grande quantidade de animais supérfluos, inúteis eantieconômicos, e que tal situação é conseqüência direta de irracionais doutrinas indianas. Turistas em trânsito por Délhi, Calcutá, Madras, Bombaim e outras cidades indianas espantam-se com a liberdade de que goza o gado vadio. Os animais perambulam pelas ruas, derrubam as bancas do mercado, invadem jardins particulares,defecam nas calçadas e interrompem o trânsito, quedando-se pelas ruas estradas e estão sempre a caminhar tranqüilamente pelas linhas férreas.

O amor às vacas afeta a vida de múltiplas maneiras. Repartições do governo mantêm asilos, onde os proprietários podem alojar, gratuitamente, suas vacas magras e decréptas. Em Madras a polícia recolhe o gado vadio que fica doente e leva-o a pastar e se restabelecer em pequenos campos próximos à estação ferroviária. Os agricultores consideram as vacas membros da família, enfeitando-as com grinaldas e borlas, rezando por elas quando adoecem e convidando os vizinhos para, juntamente com um sacerdote, celebrar o nascimento de uma nova cria. Em toda a Índia, pendem das paredes calendários estampando belas e ornadas jovens, com o corpo de grandes vacas brancas. Vê-se o leite jorrar das tetas dessas deusas, meio mulher, meio zebu. Afora o lindo rosto humano, as vacas dessas estampas pouco se assemelham àquelas que se encontram em carne e osso. São os ossos seu aspecto característico na maior parte do ano. Ao invés de jorrarem leite das tetas, os esqueléticos animais quase não conseguem amamentar uma só cria até a maturidade. 

O rendimento médio de leite da vaca zebu típica na Índia não chega a 227 litros por anos. O gado leiteiro comum, nos Estados Unidos, produz mais de 2680 litros, sendo que as produtoras campeãs não raro atingem a casa de 9970 litros anuais, mas esta comparação ainda não diz tudo. Em qualquer ano, cerca da metade das vacas zebuínas da Índia não dão sequer uma gota de leite.Para agravar a situação, o amor à vaca não estimula o amor ao homem. Já que os muçulmanos abominam a carne de porco, mas comem a carne bovina, muitos hindus os consideram matadores de vacas. 

Antes da divisão do subcontinente indiano entre a Índia e o Paquistão, ocorriam anualmente sangrentas rebeliões para impedir que os muçulmanos abatessem as vacas. E a lembrança desses antigos motins continua a acirrar as relações entre os dois países. Em Bihar, em 1917, por exemplo, 30 pessoas morreram e 170 aldeias muçulmanas foram totalmente arrasadas. Embora lamentasse tais distúrbios, Mohandas K. Gandhi foi o fervoroso defensor do amor à vaca, e desejava a proibição total de seu abate. Quando se redigiu a constituição indiana, incluiu-se um dispositivo em defesa das vacas, que quase tornou ilegal toda e qualquer forma de abate. Alguns Estados baniram-no definitivamente, mas outros ainda admitem exceções.

O problema da vaca continua a ser uma das principais causas de motins e conflitos, não apenas entre hindus e os remanescentes da comunidade muçulmana, mas também entre o Partido do Governo no Congresso e facções extremistas de hindus defensores das vacas. Em 7 de novembro de 1966, uma multidão de quase 120 mil pessoas, liderada por um bando de homens santos descalços, ornados de grinaldas de cravos-da-índias e cobertos de cinza de esterco,protestava contra o abate de vacas diante da sede do Parlamento indiano. Oito pessoas morreram e quarenta e oito saíram feridas na agitação que então ocorreu. Seguiu-se uma onda nacional de jejum entre os homens santos, liderados por Muni Shustril Kumar, presidente do Comitê para a Campanha Multipartidária de Proteção à Vaca. 

Aos observadores ocidentais,familiarizados com as modernas técnicas da agricultura e pecuária, o amor às vacas parece insensato, ou mesmo suicida. O técnico eficiente anseia por apoderar-se de todos aqueles inúteis animais e mandá-los a um destino mais apropriado. Há, contudo, certas incongruências na condenação a esse costume. Quando principiei a perguntar a mim mesmo se não haveria uma justificação pratica para as vacas sagradas, deparei com o curioso relatório governamental que afirmava ver na Índia muitíssimas vacas, mas muito poucos bois. Com tantas vacas à vista, como poderia existir escassez de bois?

A principal fonte de tração da aradura do campo, no país, é representada pelo boi e pelo búfalo macho. Para cada sitio de 10 acres ou menos, considera-se como adequado um par de bois ou de búfalos. Um pouco de aritmética revela-nos que, no que toca à aradura da terra, existe, de fato, mais escassez que excesso de animais de tração. A Índia possui 60milhoes de granjas, mas apenas 80 milhões de animais de tiro. Se cada granja tivesse sua cota de duas cabeças de gado, deveria haver 120 milhões de animais, ou seja, 40 milhões a mais do que realmente existem. A carência pode não ser assim tão ruim, já que alguns granjeiros alugam ou tomam emprestados animais vizinhos. Mas tal partilha freqüentemente resulta impraticável. Deve-se conciliar a aradura com as chuvas da monção e, quando um sitio acaba de ser arado, a época ideal para arar-se outro já pode haver passado. Ademais,terminada a aradura ainda precisa o agricultor do seu par de bois para puxar-lhe a carroça, que é a base do transporte predominante no interior da Índia. Muito provavelmente, a propriedade privada de sítios, gado, arados e carroças reduz a eficiência da agricultura indiana, mas, como logo percebi, isso não acontece por causa do amor às vacas.

A escassez de animais de tiro é uma terrível ameaça que pende sobre a maioria das pessoas da Índia. Quando o animal cai doente, o agricultor pobre corre perigo de perder sua propriedade. Se não conta com o substituto, terá de tomar dinheiro emprestado a taxas exorbitantes. E milhões de famílias rurais têm, efetivamente, perdido tudo, ou parte, das suas posses, recorrendo à parceria ou empregando-se noutros sítios,em conseqüência dessas dividas. Anualmente, centenas de milhares de agricultores desvalidos acabam emigrando para as cidades, já saturadas de desempregados e desabrigados. O camponês indiano que não for capaz de substituir o seu gado doente ou morto encontra-se na mesma situação o agricultor norte americano que não pode substituir ou reparar o trator quebrado. Mas há uma grande diferença: os tratores são feitos nas fabricas, enquanto os bois são produzidos por vacas. O agricultor que possui uma vaca possui uma fabrica de produzir bois. Com ou sem amor às vacas isso já seria uma boa razão para que não a vendesse ao matadouro. Começa-se também a perceber porque os camponeses indianos estão prontos a tolerar vacas que dêem apenas 227 litros de leite por ano. Se a principal função econômica da vaca zebu é gerar animais machos para a carga, então não tem cabimento compará-la com as especializadas vacas leiteiras norte americanas, cuja principal função é produzir leite.

Além disso, o leite produzido pelas vacas zebus desempenha um papel importante no suprimento das necessidades alimentares de muitas famílias pobres. Mesmo pequenas quantidades de produtos lácteos podem melhorar a saúde de pessoas que são forçadas a sobreviver à beira da inanição. Quando o camponês indiano quer um animal que, principalmente, lhe forneça leite, recorre à fêmea do búfalo, que tem períodos mais longos de lactação e maior rendimento em gordura de manteiga do que a zebu. Os búfalos machos são também animais mais apropriados para a aradura em arrozais alagados, conquanto os bois sejam mais versáteis e preferíveis para a lavoura seca e para o transporte na estrada. Acima de tudo, as raças zebus são notoriamente robustas e capazes de suportar as longas secas que, periodicamente, assolam diversas regiões da Índia.

A agricultura faz parte de um vasto sistema de relações humanas e físicas. Julgar porções isoladas desse “ecossistema”, em termos que interessam à conduta dos negócios na agricultura norte-americana, pode levar a conclusões muito estranhas. O gado figura no ecossistema indiano de forma facilmente desapercebidas ou desprezadas para as sociedades industrializadas e de alto teor energético. Nos Estados Unidos, as substâncias químicas já substituíram quase completamente o esterco animal como fonte principal de fertilizante agrícola. Os agricultores norte americanos pararam de usar o estrume quando começaram a arar com tratores, em vez de mulas ou cavalos. Como os tratores destilam mais venenos que fertilizantes, a preferência pela mecanização agrícola em larga escala significa, quase que necessariamente a preferência pelo emprego de fertilizantes químicos. E hoje, no mundo inteiro, vem se desenvolvendo realmente um vasto complexo industrial de petroquímicos, tratores e caminhões, que produz máquinas agrícolas, transporte motorizado, óleos e gasolina, fertilizantes químicos e pesticidas, dos quais dependem as novas técnicas de alta produtividade.

Para o bem ou mal, a maioria dos agricultores da Índia não pode participar desse complexo, não porque venerem suas vacas, mas simplesmente porque não têm condições para comprar tratores. Tal como outras nações subdesenvolvidas, não pode a Índia construir fábricas competitivas com as instalações dos países industrializados, nem pagar por grandes quantidades de produtos industriais importados. A troca de animais e estrumes por tratores e petroquímicos exigiria o investimento de um volume incrível de capital. Ademais, a conseqüência inevitável de substituir animais baratos por dispendiosas máquinas seria reduzir o número de pessoas que podem ganhar a vida coma atividade agrícola e forçar um aumento correspondente no tamanho do sítio comum. Sabemos que o desenvolvimento da agricultura de largo porte nos Estados Unidos significou a virtual destruição da pequena granja familiar. Menos de 5% das famílias norte-americanas vivem hoje no campo, em contraste com 60% de 100 anos atrás. Fosse a agricultura desenvolver-se de modo semelhante na Índia, ter-se-ia logo de encontrar trabalho e habitação 250 milhões de pessoas desabrigadas.Sendo já insuportável o sofrimento causado pelo desemprego e desabrigo nas cidades indianas, um considerável aumento adicional da população urbana só poderia levar à revoluções e catástrofes sem precedentes.

Tendo em vista tal alternativa, torna-se mais fácil compreender regimes baseados em animais, em baixa energia e em pequena escala de produção. Como já assinalei,vacas e bois fornecem substitutos de baixa energia para tratores e fábricas de tratores. E deveriam também ter a seu crédito o desempenho das funções de uma indústria petroquímica. O rebanho indiano produz, anualmente, 700 milhões de toneladas de esterco aproveitável. Cerca da metade é empregada como fertilizante, enquanto a maior parte do restante é queimada na cozinha. O volume anual de energia gerada por este esterco,  –  principal combustível da dona de casa indiana – equivale, termicamente, a 27milhões de toneladas de querosene, 35 milhões de toneladas de carvão ou 68 milhões de toneladas de lenha. Contando a Índia com apenas modestas reservas de petróleo e carvão, além de já ser vítima de intenso desflorestamento, nenhum desses combustíveis pode ser tido como substitutos práticos do esterco de vaca. A idéia de estrume de vaca na cozinha pode não agradar ao norte-americano comum, mas as mulheres indianas consideram-no um combustível de primeira qualidade, por ajustar-se perfeitamente à sua rotina doméstica.

A grande maioria dos pratos indianos são preparados com a manteiga pura chamada GHEE, para a qual o estrume de vaca é a fonte preferida de calor, por queimar com uma chama límpida e duradoura, que não ressaca a comida. Com esse combustível a mulher indiana pode pôr os alimentos a cozinhar e deixá-lo no fogo por várias horas, enquanto cuida das crianças, ajuda na lavoura ou desobriga-se de outros afazeres. Já a dona de casa norte-americana obtém o mesmo resultado através de um conjunto de controles eletrônicos que acompanham, como dispendiosas alternativas, os últimos modelos de fogões. O esterco de vaca tem ainda, pelo menos, outra importante função. Misturado com água e transformado em pasta, usa-se para assoalhar as casas. Espalhando-o pelo chão de terra e deixando-o endurecer e formar uma superfície polida, diminui a poeira e pode ser limpo com uma vassoura.Como o estrume de gado tem muitas utilidades, colhe-se cuidadosamente tudo o que dele houver. Às crianças na aldeia, dá-se o encargo de seguir a vaca da família e trazer para casa sua produção petroquímica diária.

Nas cidades, a casta de varredores temo monopólio do esterco deixado pelos animais desgarrados, e ganha a vida vendendo às donas de casa.Do ponto de vista agrícola, uma vaca seca e estéril constitui uma  abominação econômica. Mas, para o agricultor, a mesma vaca estéril pode significar sua última e desesperada defesa contra os agiotas. Sempre haverá a possibilidade de que uma monção favorável venha restaurar as energias até do mais decrépito espécime, fazê-lo engordar,gerar uma cria e tornar a produzir leite. Para isso, ele reza e às vezes suas orações são ouvidas. 

Entrementes, continua a produção de estrume. E a gente, aos poucos, vai compreendendo porque um molambo de vaca ainda pode parecer belo aos olhos de seu dono.O gado zebu tem corpos pequenos, reservas de energia na giba e grande capacidade de recuperação. Estas características se adaptam às condições específicas da agricultura indiana. As raças nativas são capazes de sobreviver por longos períodos com pouco alimento ou água, além de serem muito resistentes às doenças que atacam outras raças nos trópicos. Os bois zebus trabalham enquanto neles houver um sopro de vida.

Stuart Odend’hall, ex-veterinário da Universidade John Hopkins, praticou autopsias locais em reses indianas que haviam trabalhado normalmente até poucas horas antes de morrer, mas cujos órgãos vitais apresentavam graves lesões. Com sua imensa capacidade de recuperação, não se pode jamais classificar esses animais como totalmente “inúteis” enquanto estiverem vivos. Mas cedo ou mais tarde, porém, chega um momento em que se perde toda a esperança de sua recuperação, cessando até a produção de estrume. Ainda assim o agricultor hindu recusa-se a matá-lo para servir de alimento, ou a vendê-lo ao matadouro. Não cessaria aí um testemunho irrefutável de uma perniciosa prática econômica sem outra explicação senão os tabus religiosos sobre o abate de vacas e o consumo de carne bovina? Ninguém pode negar que o amor às vacas mobiliza as pessoas a resistir ao seu abate e ao consumo da carne. Não concordo, porém, que os tabus contra a matança e o consumo tenham, necessariamente, algum efeito prejudicial à sobrevivência e bem-estar dos homens.

Com o abate ou venda de seus decréptos animais, pode um agricultor ganhar umas poucas rúpias a mais, ou melhorar temporariamente a dieta familiar. Alongo prazo, porém, conseqüências benéficas poderão advir da recusa em os matar para a sua própria mesa, ou em os vender ao matadouro. Há um princípio aceito de análise ecológica segundo o qual as comunidades de organizamos se adaptam, não às condições normais, mas às extremas. A característica predominante na Índia é a ausência cíclica das chuvas de monção. A fim de avaliar o significado econômico dos tabus contra o abate e o consumo de carne, temos de analisar o que esses tabus representam no contexto de secas e fomes periódicas.

Esses tabus podem ser um produto da seleção natural, do mesmo modo que o pequeno porte a fantástica capacidade de recuperação das raças zebus. Durante as secas e fomes, os agricultores sentem-se fortemente tentados a matar ou vender o gado. Os que sucumbem à tentação asseguram a própria desgraça, mesmo que sobrevivam à seca, porque estarão impossibilitados de arar a terra quando as chuvas chegarem. Para ser ainda mais enfático, a matança sistemática do gado, sob os rigores da fome, constituem uma matança muito maior ao bem estar geral do que qualquer possível erro de certos agricultores com relação à utilidade dos seus animais em períodos normais. Parece provável que o sentimento de inominável sacrilégio associado ao abate de vacas tenha origem na penosa contradição entre necessidades imediatas e condições de sobrevivência a longo prazo. O amor à vaca, com seus símbolos sagrados e doutrinas santas, protege o agricultor contra atitudes que são “racionais” apenas a curto prazo.

Para os analistas ocidentais é como se “o agricultor indiano preferisse antes morrer de fome do que comer sua vaca”. Ao mesmo tipo de técnicos agrada falar sobre a “indiscutível mente oriental” e imaginar que “a vida não é assim tão cara aos povos asiáticos”. Não percebem que o agricultor preferiria comer sua vaca a morrer de fome, mas que, de fato, morreria de fome se a comesse.Mesmo com o amparo das leis sagradas e o amor à vaca, às vezes torna-se irresistível a tentação de comer carne bovina durante os rigores da fome. Na Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma grande fome em Bengala, provocada por secas e pela ocupação japonesa da Birmânia. A matança de vacas e de animais de carga chegou a níveis tão alarmantes, no verão de 1944, que os ingleses tiveram de empregar tropas para impor as leis de proteção à vaca. Em 1967, The New York Times noticiava:

“Hindus ameaçados de morrer à mingua, na região assolada pela seca em Bihar,estão sacrificando vacas e comendo-as, embora esses animais sejam sagrados para a religião hindu.”

E os comentaristas afirmam que “a miséria do povo estava além do que se pudesse imaginar”.

 A sobrevivência até idade avançada de certo número de animais absolutamente inúteis, em épocas de bonança, é parte do preço a pagar para proteger animais úteis contra o abate, em épocas difíceis. Mas pergunto a mim mesmo quanto realmente se perde com a proibição do abate e com o tabu contra a carne de vaca. Do ponto de vista da economia agrícola ocidental, parece irracional não ter a Índia uma indústria frigorífica do produto. Mas é muito limitado o efetivo potencial para essa indústria num país como aquele. Um aumento substancial na produção de carne bovina abalaria toda a ecologia,não por causa do amor à vaca, mas em face das leis da termodinâmica.

Em qualquer cadeia de alimentos, a interposição de elos animais adicionais resulta numa quebra brusca na eficiência da produção alimentar. O valor calórico daquilo que o animal come é sempre muito maior que o valor calórico de seu corpo. Quer isso dizer que há mais calorias disponíveis per capita quando alimentos vegetais são consumidos pelo homem do que quando utilizados na alimentação de animais domésticos.Em vista da alta taxa de consumo de carne bovina nos Estados Unidos, vimos três quartos de toda sua terra arável, destinam-se mais a alimentação de animais do que à humana. Como o consumo calórico per capita na Índia já se situa abaixo do mínimo diário, passar as terras à produção de carne só poderia resultar em alta de preço dos alimentos, e ainda maior deterioração do padrão de vida das famílias pobres.

Duvido que mais de 10% da população indiana viesse a tornar um item importante da sua dieta,independente de acreditar ou não no amor às vacas. Duvido também que a remessa de mais animais velhos e decrépitos aos matadouros existentes trouxesse proveitos nutricionais para os mais necessitados. A maioria desses animais acaba mesmo sendo devorada, ainda que não seja enviada ao matadouro, porque existem em toda Índia, castas inferiores cujos membros têm o direito de aproveitar as carcaças das reses mortas. De uma ou de outra forma, vinte milhões de cabeças de gado morrem, anualmente, e grande parte da sua carne é comida por esses “intocáveis” necrófagos.

Minha amiga, Dra. Joan Mencher, uma antropologista que há muitos anos trabalha na Índia, observa que os matadores existentes abastecem os não hindus da classe média urbana. Diz ainda que “os intocáveis obtém alimentos por outros meios. É bom para eles que uma vaca que morra de fome numa aldeia não seja enviada ao matadouro da cidade para ser vendida a mulçumanos ou cristãos.Os informantes da Dra. Mencher negaram, a princípio, que os hindus comessem carne bovina, mas logo confessaram sua predileção por carne caril quando souberam que as “classes superiores” norte-americana gostam de bifes.Tal como tudo o mais que venho analisando, o consumo de carne pelos intocáveis adapta-se admiravelmente a condições de ordem prática. As castas que comem carne tendem também a serem as mesmas que trabalham o couro, já que têm o direito de dispor do couro do gado abatido. Assim, não obstante o amor à vaca, consegue a Índia ostentar uma grande indústria do artesanato do couro. Até na morte, animais aparentemente inúteis continuam a ser explorados para atender interesses humanos. 

Poderia acertar, no que toca a sua utilidade, como transporte, combustível,fertilizante, leite, pavimentação, carne e couro e ainda assim errar quanto ao significado ecológico e econômico de todo o complexo. Tudo depende do custo das mercadorias, em termos de recursos naturais e de trabalho humano relativos às maneiras alternativas de satisfazer as necessidades da vasta população da Índia. Estes custos são, em grande parte,determinados pelo que o gado come. São muitos os técnicos que acreditam estar o homem e a vaca fadados a uma competição mortal por terras e alimentos. Isto poderia ser verdade se os agricultores indianos seguissem o modelo norte-americano de exploração agrícola e alimentassem seus animais com o produto dessas lavouras. Mas a incrível verdade sobre as vacas sagradas é que são infatigáveis limpadoras de rua. E apenas uma parcela insignificante do alimento consumido pelas vacas comuns provém de pastos e lavouras destacados para esse fim. Isso deveria tornar-se evidente diante de todas essas insistentes notícias sobre vacas que vagueiam nas ruas atrapalhando o trânsito. Que fazem esses animais nos mercados, nos jardins, nas estradas e ferrovias, ou nas encostas das colinas? Que estão fazendo, senão comendo toda e qualquer porção de capim,restolhos e lixo que não poderiam ser diretamente consumidos por seres humanos, para transformá-los em leite e outros produtos úteis! 

Em seu estudo sobre o gado na Bengala ocidental descobriu o doutor Odend’hal que o maior ingrediente na dieta do gado são subprodutos não comestíveis de lavouras destinadas à alimentação humana, principalmente palha e casca de arroz e farelo de trigo. Segundo estimativa da fundação Ford, metade do gado excedente em relação ao suprimento alimentar, o que quer dizer que a metade do rebanho consegue sobreviver até mesmo sem acesso às fontes de forragens. Mas isto ainda não diz tudo. Provavelmente, menos de 20% do que o gado come consiste em matéria de consumo humano; e a maior parte disso destina-se a bois e  búfalos, e não a vacas secas e estéreis Odend’hal constatou que na região por ele pesquisada não havia competição entre o gado e seres humanos pela terra ou pelo alimento: “Em geral, o gado transforma em produtos de imediata utilidade Itens de pouco valor humano direto”.

 Uma razão porque o amor as vacas é muitas vezes incompreendido é que tem implicações diferentes para os ricos e para os pobres . Os agricultores pobres valem-se dele como uma licença para apanhar o lixo, ao passo que os ricos o rejeitam por considerá-lo um esbulho. Para o agricultor pobre, a vaca é um mendigo sagrado; para o rico é um ladrão. Às vezes a as vacas invadem o pasto ou a plantação de alguém. O proprietário reclama, mas os pobres camponeses alegam desconhecimento e confiam no amor à vaca para ter seus animais de volta. Se existe alguma competição, é entre homens ou entre castas , mas nunca entre o homem e o animal.Nas cidades há também donos de vacas que as deixam soltas durante o dia,chamando-as de volta, à noite, para serem ordenhadas. Doutora Mencher, que viveu por algum tempo num bairro de classe média em Madras, que seus vizinhos estavam constantemente se queixando de vacas vadias que lhes invadiam as casas. Na realidade, tratava-se de animais de pessoas que moravam num quarto em cima de uma loja, e vendiam leite de porta em porta nas redondezas.

Quanto aos asilos de animais velhos e aos currais da polícia, prestam-se admiravelmente a que se reduza o risco de manter vacas dentro dos limites urbanos. Se uma vaca para de dar leite seu dono pode decidir deixá-la perambular até que a policia a recolha e a leve para a delegacia. Quando ela se restabelece , o dono paga uma pequena multa e leva-a de volta ao seu ponto habitual. Os asilos funcionam de modo semelhante, proporcionando pastagens baratas mantidas pelo governo, e às quais, de outra forma, jamais teriam acesso as vacas soltas na cidade. O método preferido para comprar leite nas cidades consiste em trazer a vaca até a casa do freguês e ordenhá-las na hora. É, às vezes, a única maneira da dona de casa poder certificar-se de estar comprando leite puro, sem mistura com água ou urina.O que parece ainda mais incrível nessas práticas é que têm sido interpretadas como provas de costumes hindus perdulário e antieconômicos quando, na verdade, refletem um grau de economicidade que suplanta os padrões ocidentais “protestantes” de economia e poupança domésticas. 

O amor à vaca é perfeitamente compatível com um extremado empenho de obter até, literalmente, a última gota de leite. O homem que leva a vaca de porta em porta traz consigo um bezerro empalhado, feito do próprio couro da cria e deixa-o do lado para induzi-la a dar leite. Quando isto falha ele pode valer-se do phooka, que consiste em soprar ar dentro do útero através de um cano, ou do duumdev,que consiste em meter-lhe a própria cauda no orifício vaginal. Gandhi acreditava que as vacas eram tratadas mais cruelmente na Índia do que em qualquer outra parte do mundo.

Lamentava ele: “Nós a sangramos até tomar-lhes a última gota de leite, as privamos de alimento até definharem, maltratamos os bezerros, privando-os de sua porção de leite,tratamos cruelmente os bois, castrando-os, surrando-os, sobrecarregando-os”.

 Ninguém melhor que Gandhi percebeu que o amor à vaca tinha implicações diferentes para ricos e pobres. Segundo ele, a vaca era o foco central da luta para despertar na Índia um autêntico nacionalismo. O amor à vaca adaptava-se à agricultura em pequena escala, à fabricação de fios de algodão em teares manuais, à maneira de sentar-se de pernas cruzadas no chão, às tangas, ao vegetarianismo, ao respeito pela vida e à rigorosa não violência. Até os princípios devia Gandhi o seu imenso proselitismo entre as massas campesinas, os mendigos das cidades e os intocáveis. Era a sua maneira de protegê-los contra a devastação da industrialização. As implicações assimétricas do ahimsa para ricos e pobres são ignoradas por economistas que querem tornar a agricultura indiana mais eficiente com a matança dos animais “excedentes”.

O professor Alan Heston, por exemplo, admite o fato de que o gado desempenha funções vitais para as quais não se encontram facilmente substitutivos. Mas alega que essas funções poderiam ser executadas com maior eficiência se houvessem trinta milhões de vacas a menos. Baseia-se tal cálculo na presunção de que, devidamente tratadas, seriam necessárias apenas quarenta vacas para cada cem machos para substituir o número atual de bois. Como existem 72 milhões de animais machos adultos, com esta fórmula, bastariam 24 milhões de fêmeas para reprodução. Na realidade existem 54 milhões de vacas. Subtraindo-se 24 de 54, chega Heston ao cálculo de 30 milhões de animais inúteis a serem abatidos. A forragem e outros alimentos que esses “inúteis” animais vêm consumindo seriam distribuídos entre os restantes, que se tornariam mais saudáveis e capazes, portanto, de manter a produção total de leite e de estrume em níveis iguais ou superiores aos atuais. Mas de quem seriam as vacas a sacrificar?

Cerca de 43 por cento do rebanho total encontra-se nos 62 por cento das mais pobres granjas. Essas granjas de 5 acres (cerca de 20 mil m2) ou menos contam com apenas 5 por cento dos pastos e campineiras. Em outras palavras, a maioria dos animais temporariamente secos, estéreis e depauperados pertencem à gente que habita os sítios menores e mais pobres. Assim, quando os economistas falam em dar cabo em 30 milhões de vaca, estão em verdade falando em dar cabo em 30 milhões de vacas que pertencem a famílias pobres, não a famílias ricas. A maior parte das famílias pobres, porém, possuía penas uma vaca, de maneira que toda esta poupança traduz-se não tanto em desfazer-sede 30 milhões de vacas, mas em desfazer-se de 150 milhões de pessoas – forçando-as a sair do campo para as cidades.

Os entusiastas do abate de vacas fundamentam sua opinião num erro compreensível. Argumentam que, já que os agricultores se recusam a matar seus animais e existe um tabu religioso contra isso, deve-se concluir que o tabu é o principal responsável pela alta percentagem de vacas em relação aos bois. Oculta-se seu engano na própria percentagem verificada: 70 vacas para 100 bois. Se for o amor às vacas que os impedem de abater as que se mostrem economicamente inúteis, como é que existem 30 por cento menos vacas do que bois? Já que nascem aproximadamente tantas fêmeas quanto machos, algo deve estar causando a morte de mais fêmeas do que machos. A solução do enigma está no fato de que, embora nenhum agricultor hindu mate deliberadamente um bezerro ou vaca decrepta com um porrete ou faca, pode e chega a desfazer-se deles quando, do seu ponto de vista, se tornam inúteis. Empregam-se vários métodos que não chegam a se constituir matança direta. 

“Para matar” bezerros indesejáveis, por exemplo, coloca-se uma canga triangular em seu pescoço, de modo que, ao tentar mamar, golpeiam o úbere da vaca e são mortos a coices. Os animais mais velhos são simplesmente presos a cordas curtas, deixando-se que morram de fome –  processo que não leva muito tempo se o animal já se encontra fraco e doente. Ademais, quantidades desconhecidas de vacas velhas são sorrateiramente vendidas através de uma cadeia de intermediários muçulmanos e cristãos e acabam nos matadores urbanos.Se quisermos encontrar razão de desproporção existente entre vacas e bois,devemos analisar não o amor às vacas, mas a chuva, o vento, a água e o sistema de posse da terra. A prova disso está em que a proporção de vacas para bois varia com importância relativa dos diversos componentes do sistema agrícola em diferentes regiões. 

A variável mais relevante é o volume de água disponível para a irrigação no plantio do arroz. Onde houver extensos arrozais alagados, o búfalo tende a ser o animal de carga preferido, assim como sua fêmea substitui a vaca zebu como fonte de leite. É por isso que nos vastos planaltos do norte, onde as monções e as neves liquefeitas do Himalaia formam o sagrado rio Ganges, a proporção entre vacas e bois baixa para 47para 100. Como já assinalou o renomado economista indiano K.M. Raj, as regiões do Vale do Ganges, onde se cultiva o arroz durante o ano inteiro possui uma relação vaca-boi muito próxima do que seria ótimo. E isto ainda é mais notável, por ser esta região – aplanície do Ganges – a alma da religião hindu, onde se localiza seus mais venera dos santuários.

A teoria de que a religião é responsável pela alta percentagem de vacas em relação a bois é também refutado pela comparação entre a Índia hindu e o muçulmano Paquistão Ocidental. Apesar da rejeição ao amor da vaca e dos tabus contra o seu abate e consumo da sua carne, o Paquistão Ocidental conta com 60 fêmeas para cada 100machos, o que é muito mais do que a média no estado de Uttarpradesh, predominantemente hindu. A proporção entre machos e fêmeas vem a ser praticamente a mesma em distritos de Uttarpradesh selecionados pela importância dos búfalos e da irrigação de canais em comparação com distritos ecologicamente semelhantes, no Paquistão Ocidental. Acaso pretendo dizer que o amor às vacas não tem nenhum efeito sobre a proporção entre sexos no gado ou sobre outros aspectos do sistema agrícola?Absolutamente não.

O que estou afirmando é que constitui um elemento ativo no conjunto material e cultural complexo intimamente articulado. O amor às vacas mobiliza a capacidade latente dos seres humanos para sobreviver num ecossistema de baixa energia, no qual não há lugar para desperdício ou indolência. Contribui para o impulso de adaptação da população humana, por preservar animais temporariamente magros ou estéreis, mais ainda úteis; por desencorajar o crescimento de uma indústria de carne dispendiosa em energia; por proteger o gado que engorda na via pública ou às custas do proprietário, e por conservar o potencial de recuperação do gado durante secas e fomes.Tal como em qualquer sistema natural ou artificial, existem algumas falhas, atritos ou desperdícios inerentes a estas complexas interações. Acham-se envolvidos meio bilhão de pessoas, animais, terras, trabalho, economia, política, solo e clima.

 Os partidários do abate asseveram que a prática de deixar que as vacas procriem indiscriminadamente e então diminuir-lhes o número através do abandono e da fome é antieconômica e ineficiente. Não duvido de que estejam certos, mas apenas no sentido estreito e relativamente insignificante. A economia que um engenheiro agrônomo possa obter com a eliminação de um certo número de animais absolutamente inúteis devem se confrontar com as perdas catastróficas sofridas pelos agricultores marginais, principalmente durante secas e fomes, se o amor às vacas deixar de constituir um dever sagrado.Já que a mobilização efetiva de todo o esforço humano depende da aceitação de crenças e doutrinas psicologicamente compulsivas, devemos admitir que os sistemas econômicos estarão sempre oscilando abaixo e acima dos seu pontos ótimos de eficiência. É premissa ingênua e perigosa, porém, admitir que se possa fazer todo o sistema funcionar melhor simplesmente atacando o seu conhecimento.

Podem-se obter grandes melhorais no sistema atual pela estabilização da população humana da Índia e proporcionando mais terra, água, bois e búfalos a mais gente, em bases mais eqüitativas. A alternativa estaria em destruir o atual sistema e substituí-lo por um conjunto inteiramente novo de relações demográficas, tecnológicas, político-econômicas e ideológicas  – todo um novo ecossistema. É o hinduísmo indubitavelmente uma força conservadora que torna mais difícil aos especialistas do “desenvolvimento” e aos agentes da “modernização” destruir o sistema antigo e substitui -lo por um complexo agricola-industrial de alto consumo de energia. Mas estaremos errados se julgarmos que tal complexo há de ser necessariamente mais “racional” ou mais eficiente” do que o sistema que agora existe.

Contra todas as expectativas, estudos sobre os custos e rendimentos da energia demonstram que a Índia conta com um emprego mais eficiente do seu gado que os Estados Unidos. No distrito de Singur, na Bengala Ocidental o doutor Odendhal descobriu que a eficiência energética bruta do gado, entendida como a soma total de calorias úteis produzidas por um ano e divididas pelo total de calorias consumidas durante um mesmo período não passava de 17 por cento. Compare-se isso com o déficit energético de menos de 4 por cento no rebanho de corte norte americano criado na região ocidental do país. Como afirma Odendhal, a eficiência comparativamente elevado do complexo pecuário indiano resulta não de serem os animais especialmente produtivos,mas da escrupulosa utilização de produtos pelos seres humanos: “os camponeses são extremamente utilitaristas, e nada é perdido.”.

 O desperdício é mais uma característica da agroindústria moderna do que da economia agrícola tradicional. Sob o novo sistema americano de produção de carne com comedores automáticos não só é desperdiçado o esterco do gado, mas também acaba por se contaminar a água subterrânea de vastas áreas, contribuindo, assim, para a poluição de lagos e rios.O padrão de vida mais elevado de que gozam as nações industrializadas não é resultado de maior eficiência de produção, mas de um aumento enorme do volume de energia à disposição de cada pessoa. Em 1970 os Estados Unidos consumiram a energia equivalente a doze toneladas de carvão por habitante, enquanto que o número correspondente na Índia foi de um quinto de tonelada por pessoa. A maneira com que foi gasta toda essa energia implicou um desperdício muito maior nos Estados Unidos do que na Índia. Automóveis e aviões são mais velozes que carros de boi, mas não consomem a energia mais eficientemente. Na verdade, gastam-se mais calorias em calor e fumaça inúteis durante um único dia de engarrafamento de trânsito nos Estados Unidos do que se desperdiça com todas as vacas da Índia durante o ano inteiro. E a comparação torna-se ainda mais desfavorável quando consideramos o fato de que os veículos engarrafados estão queimando as reservas insubstituíveis de petróleo que a Terra levou dezenas de milhões de anos para acumular. Se quiser ver uma verdadeira vaca sagrada, vá e olhe o carro da família.


26 de maio de 2012

Sementes de Caratuva

Nos campos de altitude, a espécie de planta que os montanhistas mais se identificam é certamente a Chusquea pinifolia, vulgo Caratuva. São vários motivos pra isso, o primeiro é que ela é abundante, o segundo é que ela só aparece em cumes altos, terceiro é um bambuzinho simpático e bastante firme que ajuda muita gente a se equilibrar e subir trilhas íngremes e quarto é que é nome de montanha e foi emprestado para o nome de uma marca de mochila antiga que hoje só é usada por alguns tiozões do tipo Julio Fiori.

Como falei, a Caratuva é um tipo de bambuzinho, mas ela gosta de sol, é portanto uma espécie heliófita. A razão dela apenas existir em cumes mais altos, é que nos mais baixos geralmente são locais onde as chuvas são mais constantes (chuvas orográficas), a umidade constante ajuda na evolução dos solos e na sucessão da vegetação campestre para vegetação florestal. Nestes locais, predominam a chamada florestinha nebular, chamada pelos naturalistas de Floresta Ombrófila Densa Altomontana. A Matinha nebular faz sombra sobre espécies rasteiras como é o caso da Caratuva e por conta disso, nosso simpático bambuzinho deixa de existir.

Existe toda uma discussão sobre as origens dos campos de altitude. Como eles foram parar lá, qual será seu destino e como é sua dinâmica. Naturalistas que estudam a natureza a partir de um ponto de vista evolutivo  (história natural) tendem a estudar o passado, através de técnicas de paleo palinologia. Estes estudos afirmam que no passado, na era das glaciações, as montanhas do Sul e do Sudeste eram todas recobertas por estes campos. No Paraná, é provável que os campos da Serra do Mar e os Campos Gerais eram unidos. A região do primeiro Planalto, onde fica Curitiba, era toda composta de campos, tendo apenas alguns capões de Floresta de Araucária em vales protegidos e mais úmidos. Esta é a hipótese que eu defendo e que está publicada em minha dissertação de mestrado e em vários artigos científicos de minha autoria.

Com o fim da glaciação, as temperaturas aumentaram e as chuvas também. O clima ficou mais propenso para a expansão das araucárias, que estavam refugiadas no vale do rio Iguaçu, onde hoje fica o Parque Nacional do Iguaçu em Foz. Os indícios para isso são inúmeros, o próprio Reinhard Maack, em seu famoso mapa fitogeográfico do Estado do Paraná classificou aquela floresta em 1950 como sendo uma mata tropical/subtropical com Lianas (cipós), Syagrus (palmeira Gerivá) - as duas espécies típicas de Floresta Estacional, a mata tropical do interior e Araucaria, advinda do refúgio de Iguaçu. Ou seja, a atual floresta teria se tropicalizado nos últimos 10 mil anos (não copiem, isso é trecho da minha dissertação - SILVA 2009 - referência abaixo).

Diversas pessoas puderam ao longo de poucos anos notar que os campos de altitude na Serra do Mar estão se retraindo em detrimento das matinhas nebulares. Este seria o destino de nossos lindos campos, a extinção, uma extinção natural por conta da manutenção de um clima desfavorável à sua presença. Mas, se analisarmos bem, 10 mil anos se passaram desde o fim da Glaciação e eles ainda estão lá. É exatamente esta a polêmica em que naturistas sistêmicos e os de história natural se divergem. O primeiro afirma que os campos estão ali por uma questão pedológica, ou seja, estão preservados porque as matas não avançam sobres solos rasos e frágeis onde estão situados. Os segundos afirmam que os campos se mantiveram por que queimadas naturais, que acontecem uma vez a cada 20 anos, limitam o crescimento de florestas e mantem os campos, que são resistentes à estas interferências. Ambos tem razões e é difícil afirmar qual ideia é a mais correta.

No último final de semana estive na Serra da Farinha Seca e num acesso súbito de vagabundice tomei uma sábia decisão de só caminhar até o cume do Pequeno Polegar e não ir mais adiante naquelas montanhas pouco conhecidas. A Farinha Seca é a serra que fica entre o Marumbi e o Pico Paraná, é exatamente a menos conhecida do espigão principal da Serra do Mar por ter os cumes mais baixos e sem muitos campos, com exceção do Mãe Catira, Pequeno Polegar, Tapapuí e Macacos. Estávamos eu, Edenilson, Julio e Moisés, somente no segundo cume de Norte para Sul e naquelas 3 horas de caminhada, já estava tão ensopado, que pesado com a água que enxugava, minha cueca já caia dentro das calças. O corpo e roupa úmida grudava tudo o que era semente, as de Caratuva predominavam.

O Julio Fiori, que caminha nestas serras há mais de 30 anos, já conhece bem a dinâmica do mato e me alertou para aquelas sementes. "São de Caratuvas" _ Disse ele. "Elas rebrotam de 7 em 7 anos, mas se não encontram luz, morrem todas, até que um incêndio aconteça e elas voltam". O Fiori não é biológo e nem conhece de plantas, mas como um matuto, já tinha observado os hábitos de vida do mato. Não é de se estranhar que as Caratuvas estejam prontas para rebrotar este ano. Estamos no meio de um ano de La Niña e o tempo tem ficado mais seco que o normal, por mais que exatamente naquele final de semana tenha passado uma frente fria provocando chuvas. Este ano tem sido um dos melhores para o montanhismo do Paraná exatamente pela falta de chuva. Será que a Caratuva está pressentindo a seca para produzir tantas sementes? 

O fato é que fazem 5 anos que não ocorre uma grande queimada na Serra e possivelmente este ano tem grande potencial para isso. Pelo menos é isso o que as Caratuvas - aparentemente -  esperam. Se elas falassem, a gente poderia por um fim na polêmica das queimadas...

O que eu acredito ter acontecido há 10 mil anos atrás

 Encostas do Mãe Catira com vista para o Planalto, hoje uma grande floresta

 Vegetação do topo do Pequeno Polegar, onde se observa Caratuvas já em meio a espécies de matinha nebular. Campo a caminho da extinção?

Mais Caratuvas 

 Sementes

Farinha Seca como é na maior parte do tempo: Molhado!

Referência:

CERRADOS, CAMPOS E ARAUCÁRIAS: A TEORIA DOS REFÚGIOS FLORESTAIS E O SIGNIFICADO PALEOGEOGRÁFICO DA PAISAGEM DO PARQUE ESTADUAL DE VILA VELHA, PONTA GROSSA - PARANÁ, Dissertação (mestrado). Programa de Pós Graduação em Geografia - UFPR 2009. 

25 de maio de 2012

Semana Brasileira de Montanhismo e algumas escaladas no Rio

A Semana Brasileira de Montanhismo cumpriu a expectativa de ser um evento histórico e eu tive o prazer de participar na maior parte dos eventos e realizar uma cobertura para o site AltaMontanha (veja o resumo dos acontecimentos aqui).

Particularmente fiquei muito contente de ver temas que há anos eu venho chamando atenção neste blog e no próprio AltaMontanha que dominaram a discussão, as proibições por causas ambientais. No evento eu vi pessoas levantarem a bandeira que a anos eu levanto, que é a filosofia de que um parque fechado à visitação não conseguirá atingir seu objetivo de preservar a natureza, pois não se preserva o que não se conhece.

Na SBM ficou evidente que as idéias preservacionistas, que são aquelas que presam por parques protegidos por redomas de vidro e fechados para a visitação, onde apenas é permitido contemplações superficiais, mas sem a presença do ser humano e predomínio de áreas intangíveis é uma filosofia falida que ao invés de preservar a natureza afastou os potenciais protetores e entusiastas e permitiu que pelas portas do fundo, verdadeiros criminosos ambientais, como caçadores, palmiteiros e madeireiros pudessem agir sem serem vistos. Enfim, mostrou um caminho que é aquele que quem gosta de natureza e aventura quer: Parques abertos para trilhas, escaladas, acampamentos e esportes.

A participação de diversos gestores de parques e autoridades ambientais deu um ar de legitimidade ao encontro e esperamos que em breve possamos ver na prática tudo o que foi discutido na teoria.

Se de um lado houve este progresso, de outro veio a tona um outro problema que aventei recentemente que é a questão jurídica que envolve a questão do risco. Agora ficou bem claro que existe esta outra frente, que advém da visão do estado de quererem proteger seus cidadãos, mesmo que isso venha a restringir sua liberdade. É o que acontece com a escalada, que é uma atividade de risco. Muitos gestores de parques proibem a prática, pois sabem que eles poderão ser responsabilizados em casos de acidentes dentro das unidades de conservação que eles administram. 

No Brasil, nunca houve um gestor de parque que tenha sido responsabilizado por um acidente envolvendo esporte de aventura, mesmo assim há proibições de montão por este motivo. Este é outro problema sério que as federações de montanhismo tem que resolver.

A SBM foi muito bem organizada e foi muito especial. Dificilmente outra SBM conseguirá bater esta no quesito organização e escolha dos locais de realização, fica aí um desafio para as próximas organizações. Infelizmente o que eles não puderam prever era o tempo, que na durante a semana foi predominantemente de chuva. Claro que entre uma nuvem e outra pudemos curtir um pouco das escaladas na Urca. Fazendo uma parceria com a Camila e com o Edson "Dubois" Struminski, pude repetir algumas vias clássicas na Babilônia e no Pão Açúcar, dentre elas a escalada da Italianos, começando pela primeira enfiada da Cavalo Louco.

Particularmente foi muito bom ter escalado com o Dubois, que é uma pessoa bem experiente e que participou do 1o Congresso Brasileiro de Montanhismo em 1993. Ele escreveu uma boa resenha sobre o evento (pode ser lida aqui). Além de escalador, Dubois é também doutor em Engenharia Florestal, participar com ele e outros escaladores doutores do Encontro Científico também foi uma boa experiência, aliás, um experiencia em que roubei um pouco a cena, aproveitando a ausência de um convidado para falar um pouco de geomorfologia das montanhas, que é meu tema de doutorado. 

Montanha é relevo e relevo é geomorfologia. No encontro científico se falou de tudo na montanha, fauna, flora, água, clima, solos, geologia, mas e o relevo? e a montanha propriamente dita? Essa fica minha singela crítica ao evento, se eu não tivesse roubado a cena, isso não teria sido discutido através de um viés temporal, que é como as montanhas brasileiras foram formadas e quando.Espero que no próximo encontro eu possa participar de novo, como convidado, com dados mais concretos do que apenas as hipóteses já conhecidas.

Roubando a cena no encontro científico



















6 de maio de 2012

Por dentro do Rio

O Rio não tem só praia, montanha, floresta. A cidade é muito mais do que isso. Com uma história riquissima, engrandecida por ter sido capital de um império que ultrapassou continentes, ter abrigado um corte européia, ter sido a capital da república e uma cidade bastante antiga para os padrões do novo mundo, o Rio é muita cultura.

Tive a chance de conhecer alguns espaços interessantes, não muito a fundo, pois o tempo foi curto pra tanta coisa. Abaixo fotos de dentro de alguns dos locais mais especiais da cidade e do Brasil.

Biblioteca Nacional

Biblioteca Nacional

Biblioteca Nacional

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Centro Cultural da Justiça Federal

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Museu Nacional de Belas Artes

Paço Imperial

Paço Imperial

Centro Cultural dos Correios

Centro Cultural dos Correios