No Noroeste da Argentina, a Cordilheira dos Andes faz parte de um geossistema paisagístico chamado Puna de Atacama, que é a região mais alta e seca da América do Sul, onde existem centenas de montanhas que se elevam a uma altitude superior a seis mil metros, a maioria delas sem neve permanente.
Com exceção do Aconcágua, do Huascarán e do Mercedário, as outras sete das dez montanhas mais altas das Américas ficam na Puna de Atacama, e são todas vulcões: Ojos del Salado, Llullallaico, Pissis, Bonete Chico, Tres Cruces, El Muerto e Sajama. Além destas, há muitas outras com menos de 6.500 metros, como Incahuasi, Cachi, Antofalla, Mulas Muertas e outras de cujos nomes já não lembro o nome.
Como o nome sugere, a Puna quer dizer altura, ou seja, é a região mais alta do deserto do Atacama. A razão para a existência deste deserto está na influência da corrente fria de Humboldt, na costa do Chile, e da zona de alta pressão existente nesta latitude próxima ao Trópico de Capricórnio, aliado com a elevação dos Andes, que se comporta como uma eficiente barreira orográfica. Todos estes fatores fazem da Puna do Atacama a região mais seca do mundo!
O relevo daqui é muito influenciado por eventos vulcânicos, além, claro, do tectonismo, que fez muitas placas se romperem, soerguerem-se ou dobrar-se formando relevos de cristas anticlinais e sinclinais, que veremos mais para frente.
Muitas destas dobras deram origem a depressões onde existem lagos periódicos. Na época das chuvas, as águas são drenadas para o interior destas zonas arqueadas e junto com elas são transportados também sais de origem vulcânica. Na época de seca, como agora, o nível freático destes lagos baixam significativamente e deixam aflorar seu substrato, constituído por sal, formando as chamadas salinas, ou salares, muito comuns por aqui.
Apesar da paisagem inóspita, esta região é fácilmente acessível para veículos, isto porque em sua maior extensão a Puna é um grande altiplano, com poucas rupturas do relevo que desenham as chamadas “cuestas”, estas sim bastante escarpadas, como a Cuesta del Obispo, no caminho entre Salta e Cachi, e a Cuesta del Acay, que é a cabeceira do vale do Calchaqui, onde Cachi está situada e que conforma uma paisagem de pré-Puna, pois ali a altitude é mais baixa.
Apesar de toda esta configuração natural, a pré-Puna é habitada pelo homem há quase 10.ooo anos, com povos nômades primitivos que eram caçadores e coletores. Até aproximadamente o ano 800 DC, pouco houve de evolução técnica, entretanto, depois do ano 1.000 DC, a região foi habitada por outros povos sedentarizados que já haviam domesticado o milho e a batata (aqui existem centenas de tipos), assim como também já domesticaram a lhama, utilizada tanto para transporte como para a produção de lã.
No vale de Calchaqui, estes povos falavam a língua kankan, mas, por volta do ano 1460, eles foram conquistados pelos incas e seu território foi incorporado ao Collasuyo, a região sul do império inca.
Os Incas do Collasuyo foram os primeiros a subir as montanhas da Puna. Estes escaladores pré-colombianos tinham motivações religiosas para as ascenções. No cume de montanhas da região, como o Llullallaico e o Licancabur, foram encontrados muitas múmias incas que indicam rituais de funerais em montanha e deixam claro a motivação não esportiva para sua ascenção. Quase no cume do Llullallaico, que é a sétima montanha mais alta da América, existe o sítio arqueológico mais alto do mundo, de onde foram retiradas três múmias de crianças, que estão hoje no Museu de Arqueología de Alta Montaña, em Salta.
O kankan foi logo suprimido pelo quéchua, a língua dos incas, deixando um vácuo para a compreensão das toponímias regionais mais antigas, como, por exemplo, o sufixo “gasta”, existente em diversos nomes de cidades, como Antofagasta, Aimogasta, Nonogasta e Payagasta. Entretanto, muitas das toponímias regionais são em quéchua, que é um idioma de origem peruana. O próprio nome Cachi é quéchua e significa “sal”.
A curiosidade da origem deste nome é que os incas achavam que a neve do cume do nevado Cachi, a montanha mais alta do vale de Calchaqui, na pré-Puna, com 6.300 metros, era sal. Isso mostra que montanhas nevadas por aquí são raridade, enquanto que sal aflorando em grande quantidade é muito comum.
Os incas estiveram por cerca de 100 anos na região, tempo suficiente para trazer e introduzir aqui a infraestrutura e técnicas de Cuzco, a capital do império inca. Com isso, construíram muitas estradas, canais de irrigação e terraças para plantio de batata e milho. Entretanto, esta economia entrou em declínio com chegada dos conquistadores espanhóis, por volta de 1540. Depois disso, a região sofreu uma substituição de sua economia tradicional para a criação e engorda de mulas, que eram usadas no trabalho e no transporte de prata da mina de Potosí, na Bolívia. O vale do Calchaqui tornou-se rota de tropas de mulas vindas das fazendas de Córdoba, Mendoza e San Juan, ao sul, em direção às regiões de extração de prata, na Bolívia e Peru, ao norte. Assim, o vale funcionava como entreposto e a Puna, como passagem.
Por incrível que pareça, a economia arriera, ou seja, da criação e engorda de mulas, foi a atividade principal até a década de 1940, quando o vale do Calchaqui foi pela primeira vez ligado à capital, Salta, por uma estrada. A partir daí, pouco a pouco a mula foi sendo substituído pelo caminhão.
Hoje, esta região vive uma fase incipiente de exploração turística, onde o tradicional contrasta com o moderno, e o povo local com o turista internacional. Mesmo em uma região aparentemente tão remota é possível dormir em um hotel confortável em povoados pitorescos, como La Poma (3.015m), San Antonio de los Cobres (3.775m) e ainda poder acessar internet por banda larga via satélite, além de tomar Coca-Cola e ainda comer uma tradicional salteña, pastelzinho assado típico daqui.
Outra coisa que achei muito curiosa por estas bandas, e que traduz bem estas influências naturais no povoamento humano tradicional da região, é que na pré-Puna uma das matérias primas mais usadas na confecção de móveis e construção das casas é a madeira de um cacto, o cardon, que é a espécie vegetal mais abundante da região.
Os cardones são cactos enormes e milenares, com indivíduos que chegam a seis metros de altura. Os povos locais cortam estes cactos e os secam, serrando em formato de tábuas, que depois de prontas adquirem um formato peculiar, com furos onde ficavam os espinhos. Além dos cardones, ainda existe um outro cacto, semelhante à palma nordestina, que se chama tunilla.
A família das cactaceas existe apenas no continente americano e está presente em todas as regiões áridas e semi-áridas do continente. O estudo desta família poderá responder questões sobre como os mosaicos vegetais americanos evoluíram. Em um estudo de Guillermo Sarmiento, da década de 1970, botânico argentino que mora na Venezuela, existe uma comparação das cactaceas existentes nas diversas coberturas vegetais secas da América. Ele concluiu que muitos cactos, apesar da proximidade e da semelhança, não guardam parentesco em grau de gênero, ou seja, que estas coberturas vegetais evoluíram paralelamente, mas sem trocas genéticas entre si.
Um exemplo disso é que as cactaceas da província fitogeográfica do Monte e da pré-Puna, ao lado oriental da cordilheira dos Andes, nada têm a ver com as cactaceas do Atacama, no lado ocidental. Da mesma forma, a vegetação seca do Chaco nada tem a ver com a caatinga no Nordeste brasileiro, apesar de suas fisionomias serem semelhantes.
Este estudo revelou também que ambas as formações secas guardam parentesco com as formações secas da Venezuela. Ou seja, lá teria sido a área fonte para a expansão dos cactos pela América do Sul, e provavelmente os desertos de Chihuahua e Sonora, no México e EUA, foram os locais onde surgiram a família das cactaceas.
Aproveitando as ambiguidades do tradicional com o global, usando a internet via satélite que existe aqui no povoado de La Poma, em pleno vale do Calchaqui, na região fitogeográfica da pré-Puna, coalhada de cardones e circundada por vulcões, iremos amanhã dar continuidade ao nosso processo de aclimatação. Faremos uma rápida ascenção a um vulcão adormecido, em verdade dois pequenos vulcões, conhecidos como Los Gemelos (Os Gêmeos). Depois, vamos subir de carro uma das grandes quebras de relevo existentes na região, a cuesta del Acay, que fica no sopé do vulcão homônimo, de 5.770m, que devemos escalar nos próximos dias.
Todos nossos passos serão registrados aqui no Gente de Montanha. Não percam os próximos relatos, com muitas curiosidades e aulas de geografia.
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Com exceção do Aconcágua, do Huascarán e do Mercedário, as outras sete das dez montanhas mais altas das Américas ficam na Puna de Atacama, e são todas vulcões: Ojos del Salado, Llullallaico, Pissis, Bonete Chico, Tres Cruces, El Muerto e Sajama. Além destas, há muitas outras com menos de 6.500 metros, como Incahuasi, Cachi, Antofalla, Mulas Muertas e outras de cujos nomes já não lembro o nome.
Como o nome sugere, a Puna quer dizer altura, ou seja, é a região mais alta do deserto do Atacama. A razão para a existência deste deserto está na influência da corrente fria de Humboldt, na costa do Chile, e da zona de alta pressão existente nesta latitude próxima ao Trópico de Capricórnio, aliado com a elevação dos Andes, que se comporta como uma eficiente barreira orográfica. Todos estes fatores fazem da Puna do Atacama a região mais seca do mundo!
O relevo daqui é muito influenciado por eventos vulcânicos, além, claro, do tectonismo, que fez muitas placas se romperem, soerguerem-se ou dobrar-se formando relevos de cristas anticlinais e sinclinais, que veremos mais para frente.
Muitas destas dobras deram origem a depressões onde existem lagos periódicos. Na época das chuvas, as águas são drenadas para o interior destas zonas arqueadas e junto com elas são transportados também sais de origem vulcânica. Na época de seca, como agora, o nível freático destes lagos baixam significativamente e deixam aflorar seu substrato, constituído por sal, formando as chamadas salinas, ou salares, muito comuns por aqui.
Apesar da paisagem inóspita, esta região é fácilmente acessível para veículos, isto porque em sua maior extensão a Puna é um grande altiplano, com poucas rupturas do relevo que desenham as chamadas “cuestas”, estas sim bastante escarpadas, como a Cuesta del Obispo, no caminho entre Salta e Cachi, e a Cuesta del Acay, que é a cabeceira do vale do Calchaqui, onde Cachi está situada e que conforma uma paisagem de pré-Puna, pois ali a altitude é mais baixa.
Apesar de toda esta configuração natural, a pré-Puna é habitada pelo homem há quase 10.ooo anos, com povos nômades primitivos que eram caçadores e coletores. Até aproximadamente o ano 800 DC, pouco houve de evolução técnica, entretanto, depois do ano 1.000 DC, a região foi habitada por outros povos sedentarizados que já haviam domesticado o milho e a batata (aqui existem centenas de tipos), assim como também já domesticaram a lhama, utilizada tanto para transporte como para a produção de lã.
No vale de Calchaqui, estes povos falavam a língua kankan, mas, por volta do ano 1460, eles foram conquistados pelos incas e seu território foi incorporado ao Collasuyo, a região sul do império inca.
Os Incas do Collasuyo foram os primeiros a subir as montanhas da Puna. Estes escaladores pré-colombianos tinham motivações religiosas para as ascenções. No cume de montanhas da região, como o Llullallaico e o Licancabur, foram encontrados muitas múmias incas que indicam rituais de funerais em montanha e deixam claro a motivação não esportiva para sua ascenção. Quase no cume do Llullallaico, que é a sétima montanha mais alta da América, existe o sítio arqueológico mais alto do mundo, de onde foram retiradas três múmias de crianças, que estão hoje no Museu de Arqueología de Alta Montaña, em Salta.
O kankan foi logo suprimido pelo quéchua, a língua dos incas, deixando um vácuo para a compreensão das toponímias regionais mais antigas, como, por exemplo, o sufixo “gasta”, existente em diversos nomes de cidades, como Antofagasta, Aimogasta, Nonogasta e Payagasta. Entretanto, muitas das toponímias regionais são em quéchua, que é um idioma de origem peruana. O próprio nome Cachi é quéchua e significa “sal”.
A curiosidade da origem deste nome é que os incas achavam que a neve do cume do nevado Cachi, a montanha mais alta do vale de Calchaqui, na pré-Puna, com 6.300 metros, era sal. Isso mostra que montanhas nevadas por aquí são raridade, enquanto que sal aflorando em grande quantidade é muito comum.
Os incas estiveram por cerca de 100 anos na região, tempo suficiente para trazer e introduzir aqui a infraestrutura e técnicas de Cuzco, a capital do império inca. Com isso, construíram muitas estradas, canais de irrigação e terraças para plantio de batata e milho. Entretanto, esta economia entrou em declínio com chegada dos conquistadores espanhóis, por volta de 1540. Depois disso, a região sofreu uma substituição de sua economia tradicional para a criação e engorda de mulas, que eram usadas no trabalho e no transporte de prata da mina de Potosí, na Bolívia. O vale do Calchaqui tornou-se rota de tropas de mulas vindas das fazendas de Córdoba, Mendoza e San Juan, ao sul, em direção às regiões de extração de prata, na Bolívia e Peru, ao norte. Assim, o vale funcionava como entreposto e a Puna, como passagem.
Por incrível que pareça, a economia arriera, ou seja, da criação e engorda de mulas, foi a atividade principal até a década de 1940, quando o vale do Calchaqui foi pela primeira vez ligado à capital, Salta, por uma estrada. A partir daí, pouco a pouco a mula foi sendo substituído pelo caminhão.
Hoje, esta região vive uma fase incipiente de exploração turística, onde o tradicional contrasta com o moderno, e o povo local com o turista internacional. Mesmo em uma região aparentemente tão remota é possível dormir em um hotel confortável em povoados pitorescos, como La Poma (3.015m), San Antonio de los Cobres (3.775m) e ainda poder acessar internet por banda larga via satélite, além de tomar Coca-Cola e ainda comer uma tradicional salteña, pastelzinho assado típico daqui.
Outra coisa que achei muito curiosa por estas bandas, e que traduz bem estas influências naturais no povoamento humano tradicional da região, é que na pré-Puna uma das matérias primas mais usadas na confecção de móveis e construção das casas é a madeira de um cacto, o cardon, que é a espécie vegetal mais abundante da região.
Os cardones são cactos enormes e milenares, com indivíduos que chegam a seis metros de altura. Os povos locais cortam estes cactos e os secam, serrando em formato de tábuas, que depois de prontas adquirem um formato peculiar, com furos onde ficavam os espinhos. Além dos cardones, ainda existe um outro cacto, semelhante à palma nordestina, que se chama tunilla.
A família das cactaceas existe apenas no continente americano e está presente em todas as regiões áridas e semi-áridas do continente. O estudo desta família poderá responder questões sobre como os mosaicos vegetais americanos evoluíram. Em um estudo de Guillermo Sarmiento, da década de 1970, botânico argentino que mora na Venezuela, existe uma comparação das cactaceas existentes nas diversas coberturas vegetais secas da América. Ele concluiu que muitos cactos, apesar da proximidade e da semelhança, não guardam parentesco em grau de gênero, ou seja, que estas coberturas vegetais evoluíram paralelamente, mas sem trocas genéticas entre si.
Um exemplo disso é que as cactaceas da província fitogeográfica do Monte e da pré-Puna, ao lado oriental da cordilheira dos Andes, nada têm a ver com as cactaceas do Atacama, no lado ocidental. Da mesma forma, a vegetação seca do Chaco nada tem a ver com a caatinga no Nordeste brasileiro, apesar de suas fisionomias serem semelhantes.
Este estudo revelou também que ambas as formações secas guardam parentesco com as formações secas da Venezuela. Ou seja, lá teria sido a área fonte para a expansão dos cactos pela América do Sul, e provavelmente os desertos de Chihuahua e Sonora, no México e EUA, foram os locais onde surgiram a família das cactaceas.
Aproveitando as ambiguidades do tradicional com o global, usando a internet via satélite que existe aqui no povoado de La Poma, em pleno vale do Calchaqui, na região fitogeográfica da pré-Puna, coalhada de cardones e circundada por vulcões, iremos amanhã dar continuidade ao nosso processo de aclimatação. Faremos uma rápida ascenção a um vulcão adormecido, em verdade dois pequenos vulcões, conhecidos como Los Gemelos (Os Gêmeos). Depois, vamos subir de carro uma das grandes quebras de relevo existentes na região, a cuesta del Acay, que fica no sopé do vulcão homônimo, de 5.770m, que devemos escalar nos próximos dias.
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