:: Leia a parte que antecede este relato
O tempo continuou ruim no Oeste argentino, com chuvas todos
os dias nas montanhas. Quando nos deslocávamos de La Rioja até Barreal, na
província de San Juan, acampamos numa reserva biológica chamada La Cienága,
onde pela primeira vez na viagem pegamos uma chuva torrencial como se vê na
Serra do Mar.
São chuvas de verão as que estão acontecendo, aquelas que o
apresentador do telejornal chama de “pancadas de chuvas à tarde”. Só que na
montanha isso vira neve.
Chegamos em Barreal sábado à tarde e nem ficamos na cidade,
indo direto ao Mercedário que fica 80 km de distância percorrendo uma estrada
que pertence à minerador Rio Tinto, que está preparando a Mina El Pachón para
explorar cobre, num projeto grandioso.
Chegando a Las Juntas, onde fica a porta de entrada da mina,
ficamos sabendo que a estrada até o Mercedário estava cortada. As chuvas em
excesso destruíram parte do caminho que estava sendo reparado.
Tivemos a permissão de entrar, sem saber o que fazer. A
ideia era acampar em um local e esperar a abertura da estrada.
Sem achar um local atraente, fomos andando até chegar no Rio
Colorado, que nasce na parede Sul do Mercedário, drenando um vale que além
daquela montanha, ainda tem mais quatro seis mil. Estive ali em 2008 com o
gaúcho Antonio Gadenz e junto com os americanos Steven Sheets e Colin Tucker, quando
escalei o Ramada e fizemos a parede Sul do Cerro Negro.
Naquela ocasião, atravessei o rio colorado à pé diversas
vezes, numa deixei cair um radio VHF Yaesu, perdendo-o para as águas barrentas
do rio, que desta vez estava muito mais forte e muito mais cheia devido às
intensas nevascas na montanha. Ficamos olhando para o rio, sem saber o que
fazer.
Antes de tomarmos qualquer decisão, chegou no local o Don
Lisandro, que faz o serviço de levar e buscar montanhistas no Mercedário. Ele
estava com um grupo de 3 pessoas de Córdoba que também ficaram sem saber o que
fazer para atravessar o rio.
Enquanto esperávamos o rio baixar, o Waldemar aparece com
uma estaca de metal e começa a cruza-lo a pé, testando a profundidade do mesmo
e atestando que era possível passar. Ele pegou a caminhonete Andina e cruzou o
Colorado, sendo depois seguido dos amigos argentinos.
Fomos seguindo estrada adentro, até enfim chegar ao ponto
onde a estrada estava cortada. Uma grande enxurrada desceu de um rio
intermitente e erodiu a estrada que fica no meio de uma vertente íngreme, com
um precipício pra cima e outro pra baixo. Ficamos ali observando o trabalho de
uma pá carregadora, até que enfim ela tampou o buraco e pudemos todos
prosseguir, chegando ao refúgio Laguna Blanca, base do Mercedário à 3100
metros, quase ao anoitecer. Nos acomodamos e jantamos com os cordobeses, que
aparentemente não botaram muita fé em nosso plano de no dia seguinte subir
acampamento, atacar o cume e voltar dali 2 dias.
Como planejado, acordamos às 5 da manhã e às 6 eu e o
Waldemar já estávamos com as cargueiras nas costas subindo o vale do Rio Blanco
rumo à qualquer local bem alto o suficiente para empreender um ataque ao cume.
O dia não estava bom, mesmo de manhã haviam muitas nuvens e
mal dava para ver as montanhas mais altas. Em ritmo forte de caminhada, nem
prestei atenção no GPS e deixamos de entrar no vale que dá acesso à rota normal
da montanha, nos obrigando a corrigir o caminho fazendo uma hipotenusa para não
ter que caminhar dois catetos de caminho. Nessa perdemos uma hora de caminhada.
Corrigido o problema, adentramos no vale correto e fomos
ganhando altura rapidamente, até que um mar de pedras substituíssem a rala
vegetação do vale do rio Blanco. Ainda em ritmo forte, chegamos à “Cuesta
Blanca”, onde observamos um grupo subindo sua forte vertente. Seguimos o
caminho deste grupo e quase no topo desta quebrada, começamos a pegar uma forte
nevasca, que deixou a paisagem toda branca e apagou as pegadas do grupo de
andinistas.
A tormenta continuou forte e senti uma coisa estranha na
cabeça. A eletricidade estática era tão grande, que produzia faísca no cabelo
que fazia um barulho parecido com o de uma abelha, inclusive eu sentia como se
tivesse uma abelha enroscada no meu cabelo, era uma sensação estranha, de como
se de repente viesse um raio do céu me fritasse ali mesmo.
A tempestade passou, o sol abriu e pelo meio do vale nevado
prosseguimos nossa caminhada.
Passou-se menos de uma hora, e quando nos acercávamos de
Pirca de Incas, um dos mais frequentados acampamentos da montanha, a nevasca
voltou a nos atingir. No meio do “White out” encontrei o acampamento do grupo
que estava em nossa frente em Cuesta Blanca. Era um grupo liderado pelo guia
san juanino Anibal Maturano, quem conheci em 2008. Como nevava muito,
resolvemos acampar ali mesmo, à 5100 metros, 12 km de distancia do base e quase
1700 metros verticais do cume.
Derretemos neve, obtivemos informação da montanha com o
Aníbal e comemos, para antes da 8 já estarmos dormindo nas cama saco, tudo isso
ao som da neve caindo na barraca e acreditando na previsão do Mountain Weather Forecast que dizia que
no dia seguinte haveria uma janela boa pela manhã.
Às 11 o Waldemar me acorda e já começamos a nos preparar
para empreender o ataque, tomando chá, comendo pão e o que tinha em mãos. As
estrelas desaparecem em segundos e uma tormenta com neve em pó nos saúda logo à
meia noite e meia, o horário preciso que saímos do acampamento.
Era noite de lua crescente, ou seja, noite sem lua. Nevava e
não era possível enxergar rastros de trilha e tão pouco algo além dos 2 metros.
Saímos navegando com o tracklog do Maximo Kausch (que escalou a montanha em
2009 junto com a Isabel Suppé). Waldemar ia na frente e eu atrás ia guiando. _Waldemar, vire levemente à direita. Agora
faça uma curva pra esquerda... Nem sabíamos que tipo de terreno era o que
enfrentávamos, mas assim fomos ganhando altura até que as estrelas preencheram
o céu novamente, dando um alívio e fortalecendo a esperança de que a previsão
ia estar correta.
Se por um lado foi um alívio ver as estrelas, por outro o
frio que se pôs agregou mais uma dificuldade à ascensão, que incluía a neve
branda e fofa, o caminho longo e alto, a inexistência de sinais que indicassem
o caminho correto, a escuridão da noite e a certeza que pela tarde o tempo se
fecharia de novo e com tempestade elétrica.
Revezamos na tarefa de abrir pegadas na neve e fui na frente
até cansar. O dia não amanhecia e fui pego por um incontrolável sono. Bocejava
todo minuto e não conseguia parar em pé, andava sonhando com minha cama em meu
delicioso apartamento em Curitiba. Até perguntei pro Waldemar porque a gente
não tirava um cochilo, já que ele sofria do mesmo mal. Fui aconselhado a gritar
para acordar, ao tempo em que ele passou à frente na tarefa de abrir caminho na
neve.
Amanheceu e com ele se foi meu sono. Tomei a dianteira até
chegar num local chamado “El Diente”. Ali pegamos um caminho contornando a
encosta da montanha, sempre abrindo caminho pacientemente no meio da neve, às
vezes escorregando e às vezes afundando até o joelho.
No meu GPS eu ia buscando o caminho até um ponto onde a rota
normal se encontra com a da Face Sul. Este ponto nunca chegava e eu já estava
muito cansado e desidratado. Para piorar, o tempo passara e já era quase 11 da
manhã, as nuvens subiam dos vales e estava preocupado.
Enfim, depois de muito esforço, cheguei à confluência das
rotas, mas estávamos apenas às 6500 metros. Em linha reta, meu GPS marcava 600
m até o cume em distancia reta e eram também mais de 250m de desnível vertical.
Isso ia demorar pra caramba!
Mesmo sabendo da distância ao destino, do horário do dia, do
terrível cansaço, desidratação e do sinal de que o tempo mudaria, continuamos,
na esperança de que o cume fosse logo ali. E não era...
Subimos penosamente um trecho bastante inclinado. O cume ser
ali em cima, mas não era. Tratava-se de um falso cume. O cume verdadeiro era
100 metros verticais pra cima, mas 400 em linha reta. Vocês precisavam ver a
cara de desanimo do Waldemar quando chegou ali. Ô montanha fdp!
Chegamos a discutir a desistência da escalada. Me veio um
sentimento de frustração enorme. Apesar do cansaço extremo que eu sentia, era
terrível chegar tão perto e desistir. Achei que a gente já ia descer, quando o
Waldemar falou: _Então vamos! Não esperei nem um segundo e já fui em direção ao
caminho que tracei na cabeça.
Desci para um pequeno portesuelo nevado e logo galguei o
segundo falso cume, bordejei pelo Sul o terceiro e logo me vi aos pés do cume,
que subi muito rapidamente, esperando apenas meu parceiro para chegar junto ao
topo. Não dava pra acreditar, quanto esforço pra chegar ali. Acho que foi
certamente a montanha mais penosa que escalei e isso não foi pelas dificuldades
técnicas da montanha, mas sim pelas condições extremas e a luta contra o tempo
(metereológico) e tempo (cronológico), afinal, nossa chance era apenas aquela
curta janela que soubemos aproveitar com precisão e muita insistência.
Descemos a montanha pagando penitencia. Uma nevasca nos
agarrou ainda antes do “Diente”, a maldita apagou nossas pegadas e tivemos o
esforço de abri-las novamente, numa situação engraçada, pois nos trechos que
percorremos a noite era tão escuro que foi com passar pelo caminho pela
primeira vez, viemos afundando muitas vezes até os joelhos de novo! Pra piorar,
ainda pegamos outra tempestade elétrica. Levei choque no nariz, e fiquei com
medo de levar um raio na cabeça...
Às 17:40 voltamos ao acampamento em Pirca de Incas,
destruídos. O grupo do Aníbal, que ficou lá, estava apostando que horas a gente
chegaria. Fora a brincadeira, eles estavam preocupados, pois ninguém sobe a
montanha naquelas condições. Eles nos receberam com alegria e com chá quente,
que caiu muito bem na minha garganta ressecada.
Eu já estava quase morto, quando o Waldemar deu a ideia de
descer. Relutei, mas pensando nas vantagens de não precisar de dormir apertado
na barraca fria e molhada de neve, repensei, arrumei as coisas e logo começamos
a descer.
Ainda pegamos chuva no caminho, pra lembrar as pernadas na
Serra do Mar, e chegamos no refúgio, onde a Silvia nos esperava, às 11 da
noite, exatas 24 horas depois que acordamos para escalar a montanha. Essa foi
nossa epopéia no Mercedario, 6770 metros, sétima montanha mais alta do
continente.`
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:: Veja o tracklog do Mercedário no Rumos: Navegação em montanhas!
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:: Veja o tracklog do Mercedário no Rumos: Navegação em montanhas!
Primeiro crux, os rios estavam muito cheios de tanta chuva. |
Segundo crux, as chuvas destruíram as estradas. Aqui trabalhadores da Mina El Pachon recuperam a estrada ao Mercedário |
Aproximação ao acampamento alto com Guanacos pelo caminho. |
Começo da nevasca na ida ao campo alto. |
Como ficou depois de alguns minutos, mesmo assim fomos. |
Nosso acampamento em Pirca de Incas |
Amanhecer na montanha. |
Abrindo caminho na neve. |
Vista para o falso cume. |
Encosta |
Chegando ao falso cume. Desanimo em saber disso. |
Vista para o Cerro La Ramada que escalei em 2008. |
Vista para o Aconcagua todo branquinho. |
Vista para o cume verdadeiro, longe! |
Chegando ao cume verdadeiro. |
Vista do cume grande. |
Precipicio. |
Cume. |
Waldemar no cume. |