Ainda no barco eu havia conhecido um grupo de cinco argentinos que se tornaram a minha companhia na viagem. Desembarcando com eles, acabei aceitando a programação do grupo e me tornei o negociador com os taxistas e consegui, por cerca de R$20,00, uma caminhonete que nos levou ao centro de Santarém para sacarmos dinheiro no banco e fazer outras coisas para depois pegarmos estrada, na caçamba, e ir para Alter do Chão, o caribe da Amazônia. Chegamos a noite e não deu para entender o porque deste apelido...
Com os argentinos e nosso meio de transporte
Ainda como o negociador, fui me informando de hotéis baratos até me inteirar do Albergue da Floresta, onde fomos nos hospedar. O local é muito descolado, tem chalés e uns quiosques para armar rede e dormir. Claro eu fiquei com a segunda opção, é muito mais fresco e econômico! Engraçado é que todas as nossas coisas ficam guardadas no chão, a menos de 10 metros da rua e mesmo assim aqui é super seguro. São retratos deste nosso país, desigual até na violência, neste caso, pelo bem.
Ao amanhecer pude ver o que é, enfim, esta cidade de nome português encravada ao lado do rio Tapajós. Alter do Chão é uma pequena vila, muito turística e simpática. Ela fica ao lado de um "Paraná" que é uma lagoa de rio. O Paraná de Alter é composto de água cristalina e tem praias de areia branca, é de fato um paraíso no molde do "Paraíso europeu" aquele onde Adão comeu a Eva. Aliás, é engraçado como água e areia liberta a libido das pessoas...
Alter do Chão é cheio de gringos, a maioria mochileiros e gente descolada que vem pra cá pra não fazer nada e fumar maconha. Não é o tipo de programa que eu gosto, é verdade, mas ao horizonte do Paraná de Alter eu pude observar um pequeno pontão se destacando na paisagem, trata-se de um morro chamado localmente de morro da Piroca. O porquê do nome eu não sei, mas fiquei com vontade de ir lá, não pelo nome, mas sim porque é um morro e eu poderia ter uma vista mais ampla da região e do rio.
Morro da Piroca ao fundo e o Paraná do Tapajós
Atravessei as águas da lagoa e fui caminhando pelo pontão de areia até chegar numa matinha e encontrar a trilha que leva ao morro. No começo da caminhada havia uma típica vegetação de igarapé, mas adentrando a terra firme a paisagem mudou completamente.
O solo ainda era um solo de areião, mas bem mais coeso, entretanto a vegetação sobre este solo não era a vegetação amazônica. Destacava-se árvores de baixo porte, troncos e galhos retorcidos, folhas grossas como couro e cascas que parecem cortiça. Entremeado à esta vegetação, muitos arbustos e gramíneas. Tratava-se de um cerrado - cerradão bem típico, porém ao lado do rio Tapajós.
Tal fato me Aguçou a curiosidade. Diferente do que muita gente acha, o cerrado não é uma vegetação de clima seco. Ela tem baixo porte e troncos retorcidos, pois é uma cobertura vegetal evoluída em solos com muita concentração de alumínio e carência de nutrientes. O alumínio além de ser tóxico para as plantas, ainda impede que elas absorvam o Potásio, que é o mineral que ajuda no crescimento das plantas, daí o porte reduzido delas.
Além disso, os cerrados evoluíram numa região (o Brasil Central) onde o clima é sazonal, ou seja, faz 6 meses de chuva e 6 de seca. Isso faz que durante uma época exista abundância de água e outra déficit hídrico. Mas as árvores de cerrado não existem até hoje à toa, elas se adaptaram à este clima e possuem raízes profundas que podem suprir suas necessidades por água até mesmo nos meses mais secos. É muito comum estas árvores terem raízes 3 vezes maior que seu tronco, assim, elas podem fazer fotossíntese o dia inteiro. Se o cerrado fosse uma vegetação de clima seco (xeromórfica), ela não iria manter seus estômatos (as células que fazem as trocas gasosas) abertas o dia inteiro.
As árvores de cerrado não tiveram que se adaptar apenas ao solo e ao clima, mas também à outros elementos relacionados à estes dois. O primeiro deles são as queimadas que ocorrem comumente durante os meses de seca. Pois bem, estas árvores possuem cascas grossas exatamente como uma evolução adaptativa à esta adversidade. As cascas não só protegem do calor, mas suas características também não permitem que ela queime, que é a "casca de cortiça".
Solo arenoso e vegetação arbórea arbustiva
Aspecto do cerrado
Cascas grossas
No solo arenoso do Tapajós, as árvores de cerrado têm certas vantagens sobre a floresta ombrófila densa (Floresta Amazônica de terra firme). Uma delas são as raízes profundas que ajudam estas árvores a se manter até mesmo nos meses de seca mais pronunciados. Outra vantagem é talvez de ordem antrópica, que é a resistência à queimadas. De certa maneira, as árvores de cerrado têm características de pioneiras. Elas crescem mais rápido e gostam de bastante claridade em todos os estágios de suas vidas, mas com o passar do tempo e do crescimento de árvores maiores, elas podem ser substituídas por outras mais evoluídas.
O fato da presença humana, no entanto, não justifica totalmente a existência desta vegetação, ele apenas potencializa sua localização. Mesmo que este possa ser um ecossistema antrópico, ou seja, potencializado pela ação humana, o cerrado tem que estar lá presente na floresta para depois ter sido, involuntariamente, condicionado pelos impactos do homem. Será que o cerrado está inserido na genética das florestas amazônicas, porém reorganizados em novos ecossistemas e sistemas de ecossitemas (o Domínio Amazônico)?
Alguns posts atrás (em Guiana portuguesa e espanhola) eu fiz breves comentários sobre a fitogeografia da Gran Sabana da Venezuela e os "cerrados" de Roraima. Vegetação campestre esta que recebe aspas exatamente por apresentar fisionomia de cerrado, mas não a mesma genética, pelo menos em nível de espécie.
Há muito tempo estudo as vegeteções campestres do Brasil, seja o cerrado, os campos subtropicais (Campos gerais, campos de cima da Serra) ou as pradarias Mistas (essas ainda superficialmente). Em minha dissertação de mestrado eu pude decifrar a origem das Florestas de Araucária do Sul como um sendo uma cobertura vegetal recente e evoluída sobre os campos subtropicais que apresenta muitas espécies em comum com o cerrado, pra ser exato, 585 espécies contabilizadas no Segundo Planalto do Paraná e incrivelmente, a maioria delas já organizada em novos ecossistemas, sendo poucos organizados em ecossistemas típicos de cerrado, fato verificado apenas no Parque Estadual do Cerrado em Jaguariaíva - PR, uma típica paisagem de exceção considerada como um reduto de cerrado.
Ao Norte do rio Amazônas encontramos o oposto, quase nenhuma espécie de cerrado e fisionomias idênticas às que ocorrem no Domínio dos Chapadões Interiores recobertos por Cerrados e penetrados por Matas Galerias.
A questão mais intrigante veio quando eu alcancei o tal do morro da "Piroca".
Ao aproximar do morro, me dei conta da presença de pequenas "pedrinhas" de cor vermelha discorrendo superficialmente pelo solo. Tais seixinhos depositados sobre o solo arenoso eram na verdade "Canga", ou seja, material laterítico. Este é o segundo elemento associado ao solo e ao clima de cerrado que eu ainda não havia discorrido.
A canga é nada mais nada menos do que ferro. Este ferro, no entanto, é original de solos de clima tropical e para evoluir precisam de uma combinação de fatores, como relevo aplainado e grande profundidade, além de tempo....
Com estas condições de topografia, nos meses chuvosos a água infiltra no solo e vai lixiviando as camadas superiores, ou seja, a água vai removendo as argilas da superfície do solo e levando para as camadas mais profundas. A tendência é que quanto mais evoluído e profundo for o solo numa região tropical úmida, maior será o seu lençol. Mas os climas sazonais, ou seja, aqueles de 6 meses de chuva e 6 meses de seca como o dos cerrados, este lençol oscila na dependência da estação do ano e isso faz concentrar as argilas em uma camada intermediária.
Acontece que dentre estas argilas pode haver ferro (hematita) alumínio (caolinita). Com o passar do tempo, este material pode endurecer e se tornar uma crosta ferruginosa dura e muito resistente: A Canga laterítica.
Eis que para minha grande surpresa e deleite, todos aqueles seixinhos de canga tinham como área fonte o tal do morro da piroca, ou seja, a piroca no caso era de ferro! Mas calma, a história não pára por aí...
Seixos de Canga ao longo da trilha
Estes seixos vieram daqui, veja que canga bonita!!!
Chegando ao topo, a 125 metros de altitude (110 metros de altura), pude observar que o morro tem uma ombreira de material branco semelhante à cimento: é caolinita. Por que deste espanto? Ora, num perfil laterítico, a caolinita sempre aparece uma porção inferior, ou seja havia muito mais material laterírico, mas o morro foi erodido e este material já não está ali.
Estas constatações dizem respeito à própria evolução geomorfológica do morro da Piroca, como sendo um morro residual, ou seja, um morro que sofreu bastante erosão, mas está preservado na paisagem devido sua resistência litológica (rocha) maior que as rochas circundantes. O Pão de Açúcar no Rio de Janeiro evoluiu assim... Entretanto, este tipo de evolução de paisagem é típico de climas tropicais secos, sob um fenômeno chamado de Pediplanação, mas pode evoluir em climas sazonais (aquele dos cerrados) sob um fenômeno chamado de Echtplanação.
Caolinita (acima e abaixo) no morro da Piroca
O fato é que o tal morro do Piroca é mais antigo que a floresta amazônica, pois na época de sua evolução não havia um clima favorável para a evolução de Florestas Densas. Sua própria evolução evidencia uma sucessão de climas no passado, com fases sucessivas de laterização e isso nos conduz a regredir ao passado para uma fase anterior ao Quaternário (ou seja, mais de 2 milhões de anos atrás), até porque as formações Quaternárias (na verdade da passagem do Terciário para o Quaternário, a Formação Barreiras) jaz sobre as formações lateríticas e diga-se de passagem, esta formação geológica é na verdade um pedimento antigo, o que quer dizer que foi depositado em clima semi-árido por gravidade. Isso nos indica mais uma sucessão de clima e joga pra gente uma data para a origem (genética) da Floresta Amazônica em idades mais recentes que isso.
Todas estas deduções e induções respondem parcialmente algumas dúvidas sobre as origens dos grandes quadros vegetacionais brasileiros, mas o mais interessante de tudo isso é que nestes dispersos e pouco conhecidos "cerrados" amazônicos (novamente entre aspas, pois não sei a origem genética), pode estar a resposta para entendermos a origem das coberturas vegetais campestres brasileiras, seja aquelas que extrapolam as fronteiras com a Venezuela ao Norte, ou aquelas que estão organizadas sob outras fitofisionomias no meio das Matas de Araucarias ou nos topos das montanhas no Sul.
Estes cerrados podem ser o "elo perdido" de proto cerrados do Terciário (da época em que se evoluíram as cangas lateríticas) e que deles evoluiu tanto nosso atual cerrado, quanto as outras campinaramas da Amazônia, a Gran Sabana, os Campos Gerais e os campos de altitude.
A pergunta que eu deixo: Existiu uma continuidade destas coberturas vegetais abertas? Se sim, quando elas isolaram?
Quem souber a resposta por favor me avise.