:: Leia a parte que antecede este relato
Logo após termos escalado o Ojos Del Salado em condições extremas, eu e o Waldemar decidimos fechar a expedição Teto das Américas escalando mais uma grande montanha. Estávamos cansados, mas mesmo assim decidimos escalar o Três Cruces Sul, a quinta montanha mais alta dos Andes, localizada a poucos quilômetros do Ojos.
As informações que tínhamos era que o Três Cruces era uma
montanha fácil, apesar da altura. Contra nós, tínhamos o fato de ainda haver
muita neve acumulada na montanha e também a desagradável notícia de que o
montanhista argentino Ricardo Córdoba ainda estava desaparecido na montanha,
contando que isso ocorrera há quase duas semanas atrás, talvez pudéssemos encontrar
com seu corpo no caminho, o que não seria muito agradável.
O desaparecimento de Ricardo fez que de repente o Três
Cruces, que é uma montanha pouquíssima freqüentada, tivesse muita gente. Isso
foi bom para acharmos o caminho de acesso à montanha e também para que o
caminho montanha acima não estivesse totalmente debaixo da neve, obrigando a
gente a navegar sem referencia e ainda afundar naquela m... branca e gelada.
Montamos um acampamento a 4900 metros, até onde achamos
prudente levar a Andina, já que naquele dia pela manhã, ainda na base do Ojos,
tivemos grande dificuldade em ligar ela devido ao frio. Ali ficamos em dúvida,
pois o tracklog do Maximo de 2010 dizia para irmos por um vale, mas os
resgatistas que procuravam o argentino desaparecido ia por outro. Decidimos ir
pelo caminho que os resgatistas estavam usando e na manhã do dia seguinte
encontramos eles num acampamento base a 5200 metros.
A história que nos contaram era que Ricardo tinha encontrado
um francês em Las Grutas (aduana argentina no Paso San Francisco), e que eles
foram juntos ao Três Cruces. Chegando lá, o Frances que estava em melhor forma
saiu na frente e Ricardo ficou sozinho, aprimorando sua aclimatação. A ultima
vez que eles se viram foi antes do Frances fazer cume. Ricardo disse a ele que
iria elevar seu acampamento a 6150 metros. Ele nunca mais foi visto.
Um pouco antes de chegarmos à montanha, um guia chileno que
participava das buscas encontrou a barraca de Ricardo num acampamento onde ele
havia dito que ia acampar. Depois encontraram um piolet e uma cueca mais
abaixo. Ninguém havia feito cume até então, então não sabia se ele poderia
estar mais embaixo ou a caminho do cume.
Por sorte, esta história toda fez que muita gente subisse
até o acampamento alto, a quase 6 mil metros e descesse. Então o caminho estava
marcado, era só segui-lo, o que foi muito fácil, dado nossa aclimatação e
estado físico excelente. Chegamos tão rápido aos 6 mil metros, que decidimos
subir até o acampamento alto a 6150,
onde encontramos a barraca de Ricardo abandonada em meio à neve. No caminho
também cruzamos com um alpinista italiano que havia tentado o cume, mas não
havia conseguido chegar lá.
Montamos uma plataforma em meio à neve e montamos a barraca.
Como ali não há água em estado liquido, passamos o resto do dia derretendo neve
para obter o precioso liquido, comemos e fomos dormir, mesmo sem ter sono.
O despertador tocou na madrugada e aí começou aquela
odisséia. Minha barraca é pequena e baixa, pra mim que não sou alto é tranqüilo,
mas eu com o Waldemar que é enorme mais o volume dos sacos de dormir faz tudo
ficar complicado. Colocar a calça corta vento é uma grande dificuldade,
principalmente porque aquela porcaria tem um suspensório, que só serve pra
gente cagar em cima e dificultar na hora de botar a calça dentro da barraca na
madrugada. O procedimento é o seguinte: Quando eu me arrumo, o Waldemar fica
deitado, assim consigo mover os braços, o que provoca uma queda de gelo em nós,
já que a respiração congela no teto. Depois que eu me ajeito, é minha vez de
deitar para que ele possa colocar sua jaqueta.
Depois disso temos que esquentar água, ligando o fogareiro
congelado no avanço da barraca. Aí não perdemos onde está o chá, o açúcar...
Tem que tomar cuidado para derrubar o chá, a perna começa a formigar por ficar
muito tempo dobrada... enfim, não é nada legal e contando que era nossa décima
montanha, já estava meio impaciente.
Tudo pronto é hora de abandonar nossa casa de nylon e subir
a montanha. Acho que aquele foi meu acampamento mais alto na vida. Também nunca
havia acampado tão próximo do cume de uma montanha tão grande. Apenas 600
metros verticais do topo! Parecia moleza...
Com lua crescente, tínhamos luz para iluminar o caminho.
Subimos uma grande vertente nevada seguindo as pegadas do italiano, que moleza!
Nem era necessário navegar na escuridão! Ainda antes do sol nascer, chegamos num
colo a 6440 metros que leva o cume do Três Cruces, onde desanimei um pouco.
Mesmo estando há apenas 300 metros verticais do topo, o caminho teria
que atravessar um campo de rochas vulcânicas enormes, que formava um labirinto.
Além deste problema, havia a questão que estas rochas estão empilhadas uma
sobre a outra, com enormes buracos entre eles, todos encobertos pela neve! Para
piorar, as pegadas do italiano terminavam ali.
O Waldemar foi à frente abrindo caminho e navegando em meio
destas rochas. Ele ia andando sobre ela, nunca pisando na neve, o que era muito
difícil, principalmente porque estávamos com botas duplas, rígidas. As vezes eu
pisava fora de uma rocha e afundava até a coxa. Era perigoso quebrar uma perna.
Com muita paciência fomos ganhando altura, até chegar num
paredão, por onde encontramos um vale e conseguimos passar por ele sem precisar
escalar. Em cima deste paredão, as rochas ficaram ainda maiores e a escalada se
tornou uma tortura. Eu escorregava e enfiava o pé na neve muitas vezes, cheguei
até a ficar com o pé preso dentro de uma destas armadilhas.
O cume estava em nossa frente, mas havia muitas torres
rochosas e vales cheios de pedras e neve. Num momento fui guiar e me perdi em
meio destas rochas, o Waldemar ficou bravo. Ele manda muito melhor do que eu
neste tipo de terreno. Eu tava super cansado e só pensava na possibilidade de
voltar ao carro e descer até Fiambalá cedo, com tempo para comprar um belo Bife
Chorizo e fazer um churrasco. Cada vez que a gente se perdia, eu via a chance
do Bife Chorizo ficar mais distante.
Eis que dando uma volta por fora de uma torre, o Waldemar
encontrou um bom caminho e conseguimos chegar ao cume, exaustos! Era 10 da
manhã, fiquei feliz, pois cedo desta maneira poderíamos voltar à civilização
ainda naquele dia.
Apesar de ser uma das montanhas mais altas do continente, o
livro do cume do Três Cruces, que encontramos sem querer embaixo da neve, tinha
poucas assinaturas. A ultima era do Frances, nada de Ricardo Córdoba. Concluímos
que ele não havia chegado ao cume.
A volta foi igualmente massacrante. Passar por aquele tipo
de terreno, tanto na subida quando na descida é igualmente uma tortura, não via
a hora de deixar aquele lugar. Foi um alivio chegar à rampa de neve.
Chegamos ao acampamento ainda cedo e rapidamente desmontamos
a barraca e começamos a descer. Andamos muito rápido e em menos de 2 horas já
estávamos no acampamento dos resgatistas. Se a neve nos torturou lá em cima,
para baixar ela foi uma dádiva! Descemos rapidamente até nosso base, onde
encontramos a Silvia nos esperando, pronta para voltarmos à civilização. Não
dava pra acreditar, era o fim de uma expedição perfeita, onde conseguimos
escalar 10 grandes montanhas, driblando todas as dificuldades com muita perícia
e tranqüilidade. Só pensava no Bife de Chorizo.
Descemos a montanha e fomos para Maricunga, a aduana
chilena, carimbar nosso passaporte e dizer que tudo ocorreu bem. Chegamos lá às
6 da tarde, uma hora antes do fechamento do paso internacional. Lá obtivemos a
informação de que a aduana argentina também fechava às 7, então corremos para
vencer os 120 km a tempo de poder voltar a civilização, e comer bife Chorizo.
Um pouco antes de nós, saiu o penúltimo carro do dia. Sabíamos
que íamos encontrar eles no caminho e isso poderia nos ajudar a conseguir
passar pela aduana, caso chegássemos um pouco depois das 7. Eis que de repente
aparece este carro no horizonte, ao lado da estrada, todo arrebentado, o cara
havia capotado o carro!
Paramos para socorrer os ocupantes. Era um casal de Santiago
Del Estero. O homem estava bem, mas a mulher estava muito abalada com a batida.
Dado o estado do carro, eles nasceram de novo! Nos apertamos e levamos os
acidentados.
Fomos muito bem recebidos na aduana argentina. Lá encontrei
os filhos de Ricardo Córdoba e contei o que vi na montanha. Foi foda ter que
contar pra eles que seu pai certamente estava morto... Mas enfim, ainda
estávamos com dois acidentados no carro, e tivemos que descer até encontrar uma
ambulância que os resgatou no meio do caminho.
Chegando tarde da noite em Fiambalá, não deu pra comer o
Bife Chorizo, porém conseguimos jantar no restaurante da Hosteria municipal,
onde veio um Bife Vazio muito bom, mas pequeno. Eu perdi uns 7 kg na viagem,
mas entrei em forma de maneira incrível. Nesta correria nem tive tempo de comer
meu sonhado Bife Chorizo, pois no dia seguinte começamos a viagem de quase 3
mil Km de volta.
Acho que esta viagem foi uma das melhores que já fiz. Nunca
escalei tanto e tão rápido. A parceria com o Waldemar Niclevicz foi excelente,
sem dizer que foi uma honra escalar estas montanhas com um cara que admiro
muito e que certamente foi um nome que me incentivou a começar a fazer
montanhismo há 15 anos atrás.
:: Veja o tracklog do Três Cruces
:: Veja o tracklog do Três Cruces
Três Cruces Central (esquerda) e Sul (direita). |
Detalhe do Três Cruces Sul. |
Indo pra montanha. |
Acampamento base a 4900 metros. |
Auto retrato dentro da barraca após algum tempo sem barbear. |
Caminho para o acampamento alto, entre o Central e o Sul. |
Aproximação do campo alto. |
Aproximação do campo alto. |
Chegando ao acampamento de 6 mil metros. Ao fundo o cume Central. |
Subindo ainda mais para o acampamento de 6150 metros. |
Barraca de Ricardo Córdoba. |
Nosso acampamento a 6150 metros. |
Lua no nascer do sol. |
Terreno com rochas grandes: Uma tortura. |
300 metros finais do 3 Cruces, um inferno! |
Amanhecer nas encostas do 3 Cruces. |
Vencendo uma pequena parede de rocha. |
Labirinto perto do cume. |
Chegando no cume. |
Vista do cume. |
cume |
Cume do 3 Cruces. |
Waldemar e eu no cume do 3 Cruces. |
Vista para o Pissis ( ao fundo) e o Vulcão 3 Quebradas (direita). |
Comemorando o décimo cume da expedição. |
Livro de cume. |