Eu com Aziz Ab'Sáber
Dando continuidade à minha revolta de como é tratado os desastres ambientais e por não dizer, "sociais" no Brasil, venho aqui reproduzir uma entrevista com o grande mestre Aziz Nacib Ab'Sáber, cuja sabedoria sempre norteou meus estudos e que inclusive o citei em meu breve texto (ver abaixo) sobre os acontecimentos em Angra dos Reis e no Vale do Paraíba.
O problema está em nossas mãos e caberá a pessoas de minha geração resolver os problemas do passado, principalmente combater a maneira de se fazer política neste país. No post anterior já dei dicas, o povo brasileiro tem que aprender a deixar de valorizar apenas os conhecimentos que dão dinheiro imediato e dar valor à uma cultura mais altruísta que busque reconhecer a origem e a dinâmica das coisas e não apenas remediar problemas crônicos.
Deixarei que o mestre Aziz fale por mim. O resumo das idéias está em suas palavras finais, que dão nome ao título deste post.
Por Mônica Manir - O Estado de São Paulo
O pai de Aziz era homem de poucas letras brasileiras. Mas esse libanês maronita entendia o idioma do bom negócio. Quando a economia de São Luiz do Paraitinga começou a ruir por causa da Central do Brasil, ferrovia que tirou a cidade do eixo da exportação de café, seu Nacibinho levantou a barra da sua lojinha e foi-se embora com a família para Caçapava. Aziz tinha apenas 5 anos. Oito décadas depois, sua memória de São Luiz é viva o suficiente para que lamente todo o patrimônio histórico levado pela inundação e para que aponte nesta entrevista, colhida em interurbanos intermitentes para Ubatuba, os motivos "fisiológicos" que teriam levado a cidade do Vale do Paraíba a sucumbir sob as águas. Um deles é a periodicidade de uma crise climática anômala. Dependendo da região, de 12 em 12 anos, de 13 em 13 ou de 26 em 26, o mundo desaba. E os homens e as moradias sofrem com as chuvas, ainda mais se decidem ocupar o que não pode ser ocupado.
As escorregadelas políticas também cá estão. Aziz não é de poupar burrices administrativas, especialmente na área ambiental. Critica todas as camadas do governo - do federal, com quem se desentendeu logo no início do mandato do presidente Lula, ao municipal, com seus "prefeitos incautos". Só o enchem de esperança os jovens, mas aqueles que frequentam as boas universidades brasileiras, para quem este eterno mestre da geografia escreve o terceiro volume de suas Leituras Indispensáveis.
São Luiz do Paraitinga perdeu ¼ dos imóveis tombados. Foi um dos maiores desastres culturais do País. Como o senhor reagiu a isso?
É compreensível que, tendo nascido lá, eu sinta uma tristeza imensa com essa destruição. Houve, no passado, uma tragédia semelhante. Quando eu era menino, com 4, 5 anos, meus parentes comentavam: "A cidade foi inundada até a beira do mercadão". A casa dos meus pais ficava numa esquina em frente do mercado e o fundo dela era o rio, que volteava tudo. Mas, na época, São Luiz tinha um crescimento populacional mais razoável. Lembro que a margem de ataque do rio, à beira d'água, era uma estradinha tangenciando o morro para poder chegar ao caminho de Ubatuba. Andei muito do outro lado do rio, onde ia coletar pitangas gostosas na borda da mata. Hoje, além das pousadas, há os eucaliptais, que são uma presença extremamente perigosa no entorno de São Luiz. Os eucaliptólogos descobriram os morros da cidade, plantaram num nível de até 15, 20 quilômetros de São Luiz para oeste. Isso mudou todo o esquema.
Como assim?
Os eucaliptos oferecem vantagens econômicas para os donos de empresas, mas, com eles, há o sugamento da água subterrânea. Na estrada de Tamoios, próximo da represa do Paraibuna, a formação de bosques de eucaliptos é ainda maior. Os eucaliptólogos se reúnem sempre lá para fazer seus projetos. Ocorre que os prefeitos são incautos. Dando um pouco mais de impostos e de dinheiro para a prefeitura, eles deixam acontecer.
Que características tem a cidade para já ter sofrido inundação no passado?
Toda aquela região da Praça da Matriz, que é a região da Rua das Tropas e a região do mercado, tudo aquilo é envolvido por um meandro. Meandro é uma volta do rio às vezes muito alongada, às vezes mais estreita. Todo meandro tem um lóbulo interno, a várzea. Do outro lado, sobretudo em áreas de morros, ficam os declives. Bom, tudo isso se modificou muito. Antigamente, o povo chamava o período de maior cheia do rio, embora não catastrófica, de tromba d'água. As duas expressões mais bonitas de São Luiz eram rio acima e rio abaixo. Vinham de rio acima grandes aguadas, mas elas raramente subiam até o lóbulo e, portanto, até a praça. Desta vez, as grandes chuvas desceram os patamares de morros e chegaram aos terraços. Houve deslizamentos de blocos de terra, árvores, pedaços de rocha. Foi uma tragédia total.
Técnicos atribuem a desgraça também ao excesso de chuvas. Está mesmo caindo mais água do céu?
Este é um período anômalo, de grandes interferências na climatologia da América do Sul, provocadas por um aquecimento relacionado ao El Niño. Primeiro foi no nordeste de Santa Catarina, depois no Rio e no Espírito Santo, depois em São Paulo, depois em Minas, depois no sul de Mato Grosso. A coisa foi se ampliando por espaços do tropical atlântico e por outras áreas do planalto brasileiro. Na época da enchente catarinense, fiz uma listagem da periodicidade climática de exemplos bastante prejudiciais para cidades e campos. Esse trabalho está publicado na revista do Instituto de Estudos Avançados de dezembro e mostra que, de 12 em 12, ou de 13 em 13, ou de 26 em 26 anos, desde 1924 até dezembro de 2008 e dependendo do lugar, houve essa periodicidade. Cheguei à conclusão de que é preciso muito cuidado nos próximos 12 anos em Blumenau e fazer obras de retenção na área de extravasamento do rio no sítio urbano. Caso contrário, quando esse ciclo atormentado da climatologia se repetir, será reanunciada a desgraça.
Mas o senhor previu que Paraitinga também poderia sucumbir?
Quando passei a visitar de novo o município para conhecer melhor minha terrinha, não senti a possibilidade de invasão de águas no lóbulo interno pegando a Praça da Matriz. Não senti. Não achei que isso ia acontecer. Tanto que insisti muito em trazer a biblioteca de ciências, que estava na ex-casa de Osvaldo Cruz, para um lugar mais baixo e frequentado por crianças. A Praça da Matriz seria o lugar ideal. Transpuseram os livros, montaram uma bibliotecazinha ali. Os empresários, aliás, em vez de se preocupar com a cidade, resolveram fazer uma dádiva apenas para mostrar colaboração. Criaram a biblioteca infantil e mandaram comprar livros que não tinham nada de relação com a educação infantil. Eu fiquei furioso com isso. Continuei levando muitos livros para lá, auxiliado por uma pessoa que fez história na USP. Foi a minha tarefa. Mas a gente não sabia que ia chegar o dia dos 13 em 13 e dos 26 em 26. Passei a me preocupar com isso depois que estudei o quadro na região de Blumenau. Já estava escrito.
Também já estavam escritas as mortes em Angra?
Lá foi invasão em áreas de risco, pousadas sucessivas nas encostas. Morro é sempre complicado. Como os prefeitos deixam isso acontecer sabendo que embaixo dos morros tropicais tem solo vermelho fofo, de forma que casas bem construídas ou mal construídas podem, durante esses ciclos de climatologia anômala, descer pelas encostas, matar as pessoas, derruir as cidades? O principal derruimento, minha filha, é a ignorância das pessoas. Ao saber que o governo do Estado do Rio havia liberado áreas de risco e de proteção ambiental para a expansão das cidades, fiquei desesperado. É preciso ter menos ignorância, mais planejadores, mais equipes interdisciplinares capazes de observar o sítio urbano, a região do rio acima, a região do morro, a do lóbulo interno dos meandros. A moça que trabalha aqui comigo em Ubatuba me dizia que, por morar em bairro afastado, não tem escola para os filhos. Começa por não ter escola, começa por não conhecer a história da cidade, tampouco o clima da região.
Que história se perdeu sob as águas do Rio Paraitinga?
A história de uma cidade que enriqueceu durante o ciclo do café e decaiu com a estrada de ferro. Durante o ciclo, a única maneira de exportar o café era saindo de Taubaté e passando pela região onde hoje está São Luiz. Ali se formou uma rua alongada, com as casas à direita e à esquerda, a Rua das Tropas. Pois bem, algumas pessoas dos arredores de São Luiz também tiveram ali fazendas de café. Houve uma época, inclusive, em que empreendedores de origem francesa tentaram fazer uma indústria de tecidos no caminho que vai de São Luiz a Ubatuba, por isso muitos nomes da cidade têm origem híbrida, portuguesa e francesa. Mas foi um investimento fracassado.
E como surgiram os casarões?
Os fazendeiros de café ficaram tão encantados com a exportação do produto pela estrada que tiveram, a partir de 1850, a ideia de construir casarões para morar na cidade. E toda roça é muito triste à noite, sobretudo aquelas com riachos cortando os morros. Enquanto na roça permaneceram os capatazes, na cidade os fazendeiros receberam imigrantes de várias partes, especialmente de Portugal, que tinham tradição e capacidade de construir casarões de pau a pique e taipa. Não é uma coisa que resista a todos os tempos, sobretudo quando há enchentes dramáticas. Bom, filha, essas pessoas receberam uma tragédia socioeconômica em torno de 1900, quando se estabeleceu a Estrada de Ferro Central do Brasil. Todo o café, do vale inteiro, passou a sair pela estrada por Taubaté, São José dos Campos e Lorena em direção ao Brás e, de lá, pela Estrada Santos-Jundiaí. Mudou-se o eixo da exportação. O problema era sério e grave. Algumas famílias de fazendeiros foram fenecendo. Pessoas de Minas Gerais, que sabiam guardar seu dinheirinho, vieram para São Luiz e compraram terras para fazer o que sabiam fazer: criar gado leiteiro. Disso viveram por muitos anos. Quanto aos casarões, muitos foram transformados em hotéis.
O senhor acredita que Paraitinga voltará a ser polo turístico?
A USP, universidade em que nasci como pessoa cultural, vai fazer um grupo de trabalho para compreender a cidade em todos os níveis. Disseram que queriam colocar o meu nome em primeiro lugar na equipe. Pedi que não me constrangessem. Eu já estou muito constrangido com mil coisas, estou desesperado com os péssimos políticos que o Brasil tem.
O senhor disse certa vez que o governo não tinha noção de escala. Continua achando o mesmo?
Em projetos médios e maiores, continua sem noção. E quem não tem essa noção dirige mal o seu país. No caso do presidente da República, sempre insisti com ele: "Você, que sabe fazer discurso, fale nas suas prédicas que vai pensar no nacional, no regional e no setorial". O nacional é a Constituição, são as reformas especiais que precisam acontecer de tempos em tempos. Regional é o conhecimento do Brasil como um todo: as terras baixas da Amazônia, os afluentes do Amazonas, o Golfão Marajoara, as colinas recobertas por caatingas entre as chapadas do Nordeste, entrando um pouquinho pelo Piauí e muito pelo Rio Grande do Norte, com raros solos vermelhos, bons quando a topografia é suave. Esses locais foram muito úteis para o Ceará, mais úteis que alguns políticos que existem lá. O setorial pressupõe pensar em educação, saúde pública, transportes, comunicação livre, setor socioeconômico e setor sociocultural.
Há quem atribua essas tormentas climáticas dos últimos meses ao aquecimento global. Há alguma verdade nisso?
Isso é bobagem. O ciclo deste ano é um ciclo periódico complicado. Essas pessoas que falam em aquecimento global erraram tanto até hoje... Diziam, por exemplo, que o aquecimento iria derruir a mata amazônica. Outro publicou num jornal de São Paulo que, por causa do aquecimento global, a mata atlântica de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul seria destruída. Ele não sabia que essa mata só está na costa. Agora, é verdade que, somando os aquecimentos das áreas industriais e das áreas urbanas, dá um aquecimento contínuo. Daí em Copenhague terem defendido o combate a ele.
O senhor achava que a COP-15 teria outro desfecho?
Eu sabia que seria um insucesso. Quero um bem imenso à Dinamarca, tenho razões culturais para isso, mas note bem: quando vi que o Lula ia indicar um grande número de pessoas, foram mais de 740, eu disse: como é que em Copenhague, cidade relativamente pequena, tradicional, como é que vai haver uma reunião em que mais de 740 pessoas possam fazer debates? Ia dar numa coisa zero.
Foi um insucesso por causa da grande comitiva brasileira?
Foi por causa de tudo, mas o Brasil viajou para lá exuberante. Levaram a Dilma. A Dilma nunca entendeu de meio ambiente. Não tem culpa. Ela tem outro passado, daí ter sido colocada inicialmente no Ministério de Minas e Energia.
E o que o senhor acha de Marina Silva como candidata, ela que sempre esteve ligada à preservação ambiental?
Ela não conhece o Brasil. É uma mulher do Acre, uma pessoa que acredita no criacionismo. Ela é ela, e acabou. Tudo o que sabe é que existiram aquelas fantásticas atitudes de Chico Mendes.
Quem entende de meio ambiente no governo, professor?
No governo, apenas os técnicos mais jovens do Ibama, com o auxílio de promotores públicos também jovens, saídos das boas universidades brasileiras. São eles que me dão entusiasmo, são eles que me dão esperança. Mas o Ibama está gradeado pelo governo federal, o que é um absurdo. Isso vai redundar, no futuro, em muita coisa contra a biografia de todos eles, sejam governantes federais, estaduais ou municipais. Digo e repito: nós no Brasil precisamos aprender a contestar os idiotas.