Lembro me bem do dia em que conheci o seu Zé. Era um sábado à tarde em 1992 quando decidi que precisava aprimorar minhas técnicas de futebol, chutando a bola contra muro sozinho. Fui surpreendido por aquele senhor negro de cabelos brancos que parecia algodão. Com sua fala mansa me interrompeu para falar do Pelé, Leônidas da Silva e Friedenreich.
Minha mãe o havia contratado para cortar a grama e fazer pequenos trabalhos no jardim. Era uma pessoa mística e filosófica, diferente das normais. Enquanto a reforma da Casa da Agricultura era levada à cabo pela prefeitura, todos os peões paravam na hora do almoço para dormir na sombra do enorme Flamboyant, jogar cartas ou prosear. Separado de todos, seu Zé chamou atenção por ficar sozinho lendo as revistas de capa amarela da National Geographic. Foi assim que minha mãe o conheceu e convidou para fazer estes serviços no quintal.
Ele era de Piaçabuçu, Alagoas, lugar onde o São Francisco encontra o mar. Veio a São Paulo ainda jovem e trabalhou em muitos lugares, indo parar anos mais tarde em Itatiba, onde trabalhou para a prefeitura fazendo trabalho de peão.
Nunca estudou, mas aprendeu a ler sozinho. Imagino que ele olhava admirado as belas fotos que tornaram a National Geographic famosa no mundo inteiro e assim decidiu que precisava saber ler.
Não lembro exatamente como ele foi morar em casa. Acho que foi depois dele quebrar o pé, quando foi atropelado por uma bicicleta em 93. Ele passou anos na edícula, sempre silencioso e discreto, ouvindo rádio CBN, comentando as notícias do mundo e interessado com suas revistas que lia em voz alta, com dificuldade, interrompendo o silêncio do quintal.
Preferia o trabalho braçal na roça que o trabalho no jardim e assim acabou indo morar numa casinha velha na Fazenda Aves do Paraíso que pegou fogo junto com suas revistas e fotos, que contava um pouco de seu misterioso passado. Acabou voltando para a casa da minha mãe onde ficou até que ela se mudou para o Ceará em 1998.
Não tinha família, mas adotou uma afilhada que aparecia para receber a mesada do pai de adoção. Ficávamos com raiva que ela só ia para receber e esquecia do velho solitário no resto do mês. Mas era o próprio São Francisco, dava toda sua aposentadoria e ficava sem nada, vivendo na absoluta pobreza e sem se importar com isso.
Não precisava trabalhar, mas ainda assim queria a vida na roça, foi parar no sitio do meu pai. Era um destemido e pegava cobras com a mão. Só se esqueceu que estava velho e ruim dos olhos, acabou sendo picado por uma cascavel. Quase morreu e ficou desfigurado. Sempre reclamou da nova mão e dizia que ia arrancar o dedo imobilizado com um machado.
Acabou voltando para a cidade, desta vez para morar na edícula da casa do meu pai na rua José de Paula Andrade, onde passou bastante tempo. Ouvia a rádio CBN e cuidava dos passarinhos. Vez ou outra ia no quintal para conversar com o velho, que me contava histórias que lia nas revista.
No futebol não fui mais adiante do que aqueles chutes no muro, mas me tornei Geógrafo e montanhista. Certa vez ouvi dele uma história que me comoveu: Ele pediu para que quando eu fosse ao Himalaia escalar, que eu o contratasse como carregador e que apesar de velho, ainda aguentava muito peso.
Mudamos de casa e ele foi junto. Teimoso, se aprofundou na síndrome da acumulação, levando lixo para dentro de casa, o que deixava a Fátima furiosa. Nessa época, as pessoas começaram a evitar ele. Deixou de ler a National Geographic e começou a pregar a bíblia, sempre interrompendo o trabalho objetivo da Dalva e da Claudete.
Saiu de casa, deixou a barba e o cabelo crescer e se tornou um personagem messiânico. Andava pela rua pregando, apresentando sinais de demência.
Morando no Sul, há anos não o via. Perguntei para minha mãe se ela tinha notícias e ouvi que da última vez que ela o vira, ele havia dito que ia voltar a Piaçabuçu e virar pescador com uma jangada. Reclamava com os taxistas no ponto em frente ao Rosita e pedia que o Fattori pagasse a passagem dele até Alagoas.
Perguntei ao meu pai e ele disse o viu sentado na sarjeta com uma poça de urina no chão, escorrendo pela calça e parou para ajudar. Já não percebia o estado em que se encontrava, estava magro como um palito e falava sozinho, confundindo as coisas. Ao reconhecer o meu pai, ele perguntou de mim. O seu Zé já não era o mesmo que eu conheci há mais de 20 anos atrás...
Recentemente sonhei com ele. A imagem que tenho é do seu Zé no quintal da José de Paula Andrade, que foi demolida há pouco tempo. Estava sentado na cadeira de plástico, de frente ao pé de Jaboticaba, perto da gaiola dos canários. Tinha em mãos uma revista de capa amarela e ao lado dicionário sem capa que ele achou no lixo, apenas para ganhar mais vocabulário. Ele olhava para o vazio no silêncio, num fim de tarde bucólico.
Onde foi parar o Seu Zé? Pensei que tivesse morrido, ou que estava pescando com sua jangada.
Hoje tive a confirmação, São Francisco encontrou seu mar.
Hoje tive a confirmação, São Francisco encontrou seu mar.
Pôr do sol no morro do canal. Dia 29/10/2013. |