:: Leia sobre a expedição Mercedário 2008 desde o começo
:: Leia a história que antecede este relato
No mesmo dia em que fizemos cume no Cerro Ramada, descemos de volta ao acampamento base. Lá, re-encontrei-me comAntonio , que como imaginei estava na pior angustia, como eu também estaria se estivesse na montanha doente vivendo apenas o pior desta atividade: o desconforto dos acampamentos, o isolamento e a comida ruim.
:: Leia a história que antecede este relato
No mesmo dia em que fizemos cume no Cerro Ramada, descemos de volta ao acampamento base. Lá, re-encontrei-me com
O acampamento estava mais povoado, com uma dupla Argentina de Barreal e dois alemães orientais, muito gente boa, todos eles por sinal.
Passei um bom dia de descanso conversando sobre os mais variados assuntos com estes alemães, além de Steve e Collin é claro. Os americanos, apesar de todo o preconceito que sempre temos sobre eles, eram muito boa gente. Tive também muitas conversas interessantes sobre evolução com o Collin, que é botânico. Ele se interessou bastante sobre a Teoria dos Refúgios Florestais e a pesquisa que eu desenvolvo no Brasil.
O clima era de descontração total, mas mal sabíamos o que estávamos para esperar. Mais tarde, desceu vindo do Cerro la Mesa, Aníbal, seu ajudante e cliente. Eles haviam feito algumas rotas inéditas na montanha. Quando Collin comentou com ele nossa intenção de escalar o Cerro Negro desde Pirca de Polacos ele falou:
_ Se você forem fortes e loucos o suficiente, dá pra fazer!
Entretanto só fui saber deste comentário quando estava no meio da parede. Até então, o Cerro Negro era para mim um mero treino para a face sul.
Acordei às três horas da madrugada do dia 11 para ascender o Negro. Mochila e equipamentos todos prontos me aguardavam. Que conforto vestir-se e equipar-se numa altitude confortável de apenas 3600 metros e apenas alguns números abaixo de zero.
Requentei um macarrão safado que me esperava na panela.
Luzes de led iluminavam a barraca vizinha dos americanos e apenas as estrelas iluminavam o caminho numa madrugada de lua nova. Quando me encontrei com Steve e Collin eles olhavam as constelações. Mostrei a eles o cruzeiro do sul e disse que aquilo só era visível daqui do sul e que a quarta estrela se chamava “Maria intrometida”, entretanto não me lembrava como se chamava “intrometida” em inglês e brinquei:
_ Intrometida?! É como eu, apareço do nada e estou escalando com vocês!
Eles não entenderam a piada e chamaram a estrela de “Maria Pedro”.
_C’mon Maria Pedro, Let’s Rock, it’s time to climb!
E lá fomos nós para montanha, ao mesmo tempo em que me despedia de Antonio , que pela manhã iria descer a montanha junto com um dos garotos argentinos de Barreal.
A dificuldade inicial, como eu previa, era atravessar o largo rio Colorado. De noite, não dá para achar um bom lugar para atravessar, mas ainda bem que o Collin, enquanto passávamos um dia descansando em Pirca de Polacos, foi sozinho procurar um lugar melhor e marcar com pedras esta passagem. Entretanto, mesmo o melhor lugar para passar não nos isentou de molhar os pés. Pior para mim, que ingenuamente esqueci deste detalhe e não levei uma meia reserva!
Atravessando o rio ainda tínhamos que encontrar um caminho bom para subir as morainas até a base da canaleta de gelo da montanha. Esta tarefa não foi nada fácil, uma vez que lá, Collin não tinha marcado o caminho. Acabamos perdendo um tempo precioso subindo a moraina por lugares impossíveis até achar um caminho plausível. Contudo, chegamos na base da canaleta com o dia clareando, sorte minha, pois acabei enxergando uma meia suja, porém seca, esquecida desde minha ultima caminhada no Pico Paraná, no fundo de minha mochila.
Atravessamos penitentes enormes até chegar no Bergeschrund da montanha que são gretas que ocorrem no contato da rocha com uma geleira em terrenos inclinados de montanha. No caso do Cerro Negro, era uma parede de gelo bastante inclinada, com cerca de 80 graus acessível depois de uma greta bem grande.
Collin, que mora no Alaska e está acostumado com escaladas em gelo técnicas, tomou a inciativa de guiar a enfiada enquanto que Steve dava segurança. Após procurar um lugar seguro para escalar e subir alguns metros, o americano percebeu que estava escalando um Serak prestes a cair e resolveu descer abandonando um parafuso de gelo. Foi quando eu tomei a iniciativa de ir mais para a esquerda e achar um lugar onde pudemos escalar com mais segurança e vencemos o enorme Bergeschrund.
Depois da primeira parte técnica, a escalada parecia que ia ser moleza. Pura ilusão!
Começamos a subir por um lugar bastante irregular onde aparentemente estavam se formando penitentes. De repente, chegamos na base de um Serak gigantesco e tivemos que contorna-lo indo mais perto da parede de rocha. Lá, o gelo era mais sujo e ruim. Pude perceber que esta diferença no gelo era por que fazia tanto calor durante o dia que o glaciar descongelava formando cachoeiras que durante a noite congelava. Aos poucos fui notando como esta cachoeira ia descongelando e aos poucos tudo ai ficando molhado e mais perigoso.
Mal percebi e já era meio dia. O sol estava forte e mesmo assim eu me esforçava em escalar o gelo duro formado do congelamento da água que derrete durante o dia. De repente, ouço um zumbido e sinto algo passar velozmente perto da minha cabeça: Zummmmmm.......
Como um projétil, uma pedra do tamanho de uma bola de futebol de salão passa a poucos centímetros de mim. Quem derrubara? O calor!
As rochas nas montanhas são bastantes instáveis, uma vez que o gelo é um excelente agente erosivo. A água penetra nas fraturas e frestas e quando a noite chega, esta água se congela e expande, quebrando uma rocha grande em várias pequenas. Este fenômeno se chama “efeito de crack”. Em altitude, o que mantém estas rochas estáveis é o congelamento da água. Quando está frio, as rochas ficam como se estivessem concretadas pelo gelo, num fenômeno chamado permafrost. Entretanto estes anos têm se verificado uma grande atenuação do permafrost em altitude e o gelo sujo da canaleta era um indicador que este ano estava muito quente e que muita pedra ia cair sobre nossa cabeça se não saíssemos daquele lugar logo.
Eu continuava escalando o melhor que podia, mas o gelo duro era um grande obstáculo, assim como minhas botas que são três números maiores que meu pé e meu anorak que também é enorme! Tudo isso fruto de minhas compras de Internet, já que estes equipamentos de alta montanha não existem no Brasil e eu tenho que compra-los de olhos fechados sem poder saber se são do meu tamanho (é foda ser baixinho!).
Meus pés sambavam dentro da bota dupla, minha perna era um gambito dentro de um sapatão destes de palhaços, minha canela sangrava e eu sentia isso por baixo da roupa.
Sentia uma grande sede, mas não conseguia parar de escalar, não queria perder tempo cravando minhas piquetas no gelo, passando minha solteira sobre elas e tirando minha garrafa de dentro da mochila para beber água. Quanta Logística para algo tão simples. Usar um sistema de hidratação? Esqueça, bastava bater um vento para que a água dentro do tubinho congelar.
Zummmmmmmmm... Lá se foi outra pedra, desta vez pelo menos eu vi caindo e pude desviar sem apenas contar com a sorte. Minha preocupação com as pedras caindo neste momento era tão grande que eu só escalava olhando para cima, foi quando eu percebi que minha mochila também me atrapalhava! (Mas que droga, será que mesmo depois de quase uma década de escalada em alta montanha eu ainda não consegui acumular um equipamento bom?!)
Após esta segunda pedra, fiz um desvio em diagonal e consegui sair da rota de colisão. Aliviado, fui tomar uma água e deixei uma garrafa cheia cair, quase que o Steve foi atropelado por ela.
Continuei subindo até conseguir por definitivo passar este trecho mais exposto da canaleta, encontrando-me com Collin que estava mais na frente.
Já era tarde e o sol agora estava com tudo. Steve ainda na zona de queda de rochas nos preocupavam. Gritamos várias vezes para ele, mas sem respostas. Após esperar por quinze minutos, ele aparece, cansado, mas a todo vapor. Ufa! Nada havia acontecido.
Já se passava das duas. Olhando para baixo dava para ver que já havíamos subido bastante, mas olhando para cima não dava para ter noção do tanto que faltava. Olhei no GPS e vi que nem havíamos chegado aos cinco mil metros. _ Não é possível! Pensava.
Queria parar de pensar. Tanto tempo escalando e nada! _ Quando descer eu não piso no Mercedario! Isso aqui já basta! Eu pensava sem comentar meus pensamentos com meus colegas (mais tarde eles me disseram que estavam pensando o mesmo!).
O cansaço já tomava conta do corpo e eu não podia parar para descansar. Mesmo que eu quisesse, não podia me sentar e sentir conforto, pois numa inclinação de 60 graus isso só ia acontecer se eu cavasse uma plataforma, mas eu não ia fazer isso por que aí sim ia ser cansativo. Eu também sabia de uma coisa: Nesta altura, não dava mais para descer pela rota de subida, se eu quisesse voltar para casa e rever todas as pessoas que eu sentia saudades, eu tinha que chegar no cume e descer pela rota normal.
Já eram quase quatro e ainda faltavam mais quatrocentos metros para o cume. Me lembrava da escalada que eu havia feito em Pedralva – MG, quando subimos uma via de 320 metros de altura. Havia demorado um dia inteiro para subir só isso e no Cerro Negro eu tinha que subir mais do que eu subi naquela escalada sendo que já era tarde e para piorar, o tempo estava dando sinais de piora.
Depois das quatro da tarde, nuvens negras encobriram o cume do Mercedario e das montanhas mais altas da região. O calor foi substituído pelo frio da sombra e pelo vento que ao assoprar roubava ainda mais nossas energias. O gelo, no entatanto, estava bem melhor do que nas altitudes inferiores.
Após passar pelo trecho de canaleta, chegamos num glaciar menos inclinado, com “apenas” 45 graus, mas com gelo glaciar. Lá, pude progredir mais rápido me apoiando próximo ás laminas das piquetas. Comecei então a escalar bem mais rápido e metódico, ao ponto de sentir dor por esforços repetitivos.
Olhava para o lado e via meus companheiros no mesmo estado que eu. Olhava para o outro lado e percebia que estava quase na mesma altitude ou próximo do fim da parede sul do Mercedario, eu sabia que o cume esta perto!
Subimos sem pensar e sem olhar para cima, até chegarmos em um local onde tinha vários esporões com canaletinhas de gelo, pela qualidade e facilidade, me meti na canaletinha mais na esquerda até que o gelo terminasse numa crista rochosa onde dava para ficar em pé. Era o fim? Não.
Esperei os americanos chegarem e fui além desta crista para ver onde ia dar. Era impossível transpô-la. Tivemos que fazer uma diagonal e subir uns acarreos até chegar uma outra crista que desta vez sim nos levava ao cume da montanha.
Nos reunimos os três juntos, eram cinco da tarde e sob vento forte prometemos: Não vamos dormir aqui em cima, segurem as pontas por que vamos subir. Enquanto engolimos uns chocolates, tive tempo até de dormir!
Desta vez sem precisar de piquetas, num terreno mais fácil tecnicamente, porém esgotante para quem se achava em nosso estado, subimos vagarosamente até o ponto mais alto, onde nem sequer tiramos fotos. Atravessamos o cume e já começamos a serpentear a vertente para descer a montanha por outro lado, que ainda era um desafio, pois não conhecíamos esta rota.
Por sorte, a descida foi fácil de encontrar e saímos da zona de altitude com facilidade. A descida, no entanto não foi nada prazerosa. Tivemos que caminhar por vertentes com pedras soltas o tempo todo, onde era muito difícil manter-se em pé. Nos metemos por dentro de vales e canyons e quanto mais descíamos, mais víamos que ainda faltava para descer. Aliás, havíamos subido 2000 metros de altitude até o cume!
Steve, que na rota estava morto de cansaso, ressuscitou na descida e foi na frente, enquanto eu e Collin ficamos para trás. Quando estava quase escurecendo, vi Steve abaixo de mim no meio de um canyon. Gritei a ele para que não descesse por este lugar e sim atravessasse-o para descer pelo outro lado em meio à um acarreo. Entretanto, da mesmo forma que ele não escutara durante a escalada, ele também não escutara na descida. Cansado, e achando que ele talvez tivesse achado um caminho melhor, ignorei e continuei minha descida, chegando em Pirca de Polacos junto com Collin às 23 horas, totalizando 20 horas de atividade fisica intensa e extrema.
Nesta noite não dormi, capotei!
No dia seguinte, acordei com o barulho do zíper da barraca dos americanos. Despertei desejando bom dia! Mas ao contraria do que eu esperava, Collin me disse que não, pois Steve não tinha dormido aquela noite na barraca.
_Como não?!
_ Eu chutei o saco de dormir dele e percebi que não tinha nada dentro. Ele ainda está na montanha!
Naquele momento me arrependi por não ter sido mais insistente quando o vi descer pelo Canyon. Pensei nas piores coisas, como pedras soltas caindo sobre ele, ou ele caindo e quebrando a perna!
_Oh meu deus! Tudo menos isso! Tragédia não!
Nem sequer tomei meu café da manhã peguei umas comidas energéticas enfiei na mochila e fomos em direção à montanha à busca de Steve.
Atravessamos todos os rios e quando estávamos prontos para subir, enxergamos uma pedra se mexendo, Ufa! Era Steve.
O Californiano havia passado uma noite daquelas dentro do Canyon. Ele percebera que lá era um caminho sem saída, mas sem energia para voltar ele havia bivacado lá mesmo. Com equipamentos de primeira, não havia passado frio e estava tudo bem. Ele comeu minha barrinhas energéticas e aliviados fomos para o acampamento onde passamos o dia inteiro dormindo tentando se recuperar do dia estafante que havíamos passado no Negro.
Obviamente que depois de tudo o que passamos por lá, acabamos desistindo da parede sul do Mercedario, pois havíamos feito uma escalada mais difícil que o nosso maior objetivo.
Não sei se fico mais feliz ou mais triste com isto. A Canaleta sul do Negro é bem mais técnica e difícil que a sul do Mercedario. São 1300 metros de escalada em gelo com perigos maiores que o vizinho maior. Entretanto sinto que escalei uma rota interessante numa montanha pouca expressiva.
Acho que por fim, não fracassei no Mercedario, até por que nem sequer eu tentei escalá-lo. Fui bem sucedido em outra montanha mas falhei no meu plano. Escalar duas montanhas extremas como estas em poucos dias ia ser impossível, então após passar um dia descansando, arrumamos nossas coisas e descemos de volta à civilização, depois de treze dias de montanha, voltando para a cidade no dia em que completei oito anos do começo de minha primeira expedição aos Andes.
Vista da grande canaleta desde a base da montanha ao amanhecer
Collin acercando-se da base do Bergeschrund
Collin guiando a escalada no Bergeschrund.
Steve subindo o bergeschrund.
Subindo a canaleta entre o Serak e as rochas.
Trecho "sujo" indicativo de queda de rocha na rota.
No finalzinho da canaleta
Terminando a escalada tecnica depois de 1300 metros de gelo.
Vista do final da rota no Cerro Negro para o Mercedario. Na esquerda se ve a face sul e de frente ao Negro o Glaciar Caballito. Nota-se que o tempo estava bem fechado. Ventava muito no momento da foto.
Auto retrato no topo da rota.
Canyon onde Steve teve que pernoitar na descida do Cerro Negro visto desde Pirca de Polacos. Tudo bem no final.
Continue lendo esta história
Continue lendo esta história